domingo, 31 de janeiro de 2021

Enquanto isso, em um pequeno pesado ensaio filosófico:

Não é que o sujeito narcisista não queira chegar a alcançar a meta. Ao contrário, não é capaz de chegar à conclusão. A coação de desempenho força-o a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação. Vive constantemente num sentimento de carência e de culpa. E visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir. Sofre um colapso psíquico, que se chama de burnout (esgotamento). O sujeito do desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem.
 
 — Byung-Chul Han, no Sociedade do cansaço

sábado, 30 de janeiro de 2021

Hannibal, do Bryan Fuller


O tema é empatia como uma parada perturbadora. E o setor de arte não tem limites: aquele totem de corpos mutilados na praia, por exemplo, em meados da primeira temporada, é um dos objetos cênicos mais impressionantes para sempre. Aliás, como pode algo tão gore ser ao mesmo tempo tão classudo, cheio de referências artísticas e mitológicas? Os diálogos parecem citações de deuses da sabedoria e o protagonista é elegante igual o diabo. Melhoraram muito as ideias dos filmes com o Hopkins, brincando com o velho fã que acha que sabe onde a coisa vai acabar e de repente não é bem assim. Ademais: três temporadas depois e você perde um tempo a mais no mercado, em busca de temperos, molhos, coisas exóticas. Ademais 2: série não recomendada para vegetarianos. 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Notas de um janeiro qualquer

Não existe mudança de um dia para o outro; na verdade, parece que tudo que você faz, em algum grau, não é para você, mas para quem vem depois de você. Legado, posteridade — é assim que justificamos a necessidade de semear ideias, de se reproduzir? Pareço um androide falando. Veja só: o tempo de uma vida não lhe é o bastante. Veja bem: o que não é para a posteridade, a sua porção, aquilo que você consegue aproveitar, acaba depressa, escapa pelos dedos, sopra um vento e apaga a centelha e aí você recomeça a lida em busca de algo mais concreto, em busca de significados; e cansa, escapa, apaga; recomeça, faz diferente, escapa, apaga, aproveita e acaba; é agora, agora vai, escapa, não é para você; centelha tremenda que queima depressa, você então recomeça; sopra um vento na sua porção e você não consegue aproveitar e, não olhe agora, mas aquilo que você tinha por significado concreto acaba de escapar; vai embora a mudança, vai embora um dia para o outro, vai embora as ideias semeadas; fica a lida e os dedos. 

Tolice. “Em busca de significados”. Alguém sabe? O da vida que não é o bastante. 

Aquele que quer saber, não descobre. Mas se sente realmente vivo ao tentar descobrir. O melhor sempre está na experiência. Produzir é obelisco, o produto é subatômico. Investigar um caso é melhor do que o caso em si. A sensação de coração batendo — e de saber que na verdade você não é um androide — acontece no meio e não no fim.

Você está nos meios, no meio, em meio, a meio. Tentando segurar firme, tentando proteger a centelha. Quando conseguir sua porção, pronto, um fim e ponto final, um fim para justificar os meios. Um fim que você define ali na hora e já era. É o momento, você sabe quando ele surge, quando ele surgiu. Sua intuição — que nunca cansa, escapa, apaga — presta para isso, presta para te dizer: você levantou o obelisco e investigou o caso. A mudança, o significado, se houve, aconteceu pela experiência e não pelo legado. Não de um dia para o outro, mas apenas em um momento, um momento que é como um coração tipo centelha, tipo vento. Se a posteridade aproveitar algo da lida dos seus dedos, ok, bom. Quanto a você, a satisfação nos meios, no meio, em meio, a meio, é a sua porção. 

E agora? Recomeçar? Por que não?

Devaneio. Insights de 2021. 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Moment, do Dark Tranquillity

Esse momento que o disco fala... seria aquele momento em solitude, em repouso auto imposto, em ócio depressivo, aquele momento em que você tem algo para fazer, mas ainda está descobrindo como fazer? Aquele momento de observação em que é possível entender o universo em uma folha caindo de uma árvore? É o Valis. Alpeh. 

Destaque para 

"Identical to none", que toca num tema constante para a banda, o "ser nenhum"; 

"The dark unbroken", a trilha sonora de um 2020 cheio de insights inúteis; 

"Eyes of the world" e "In truth divided", pois os vocais limpos do Stanne estão maravilhosos.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Conseguir alguma coisa

A maneira zen-sunita de encarar o parto é esperar sem outro propósito no estado de mais elevada tensão. Não lute com o que está acontecendo. Lutar é preparar-se para o fracasso. Não se deixe prender pela necessidade de conseguir alguma coisa. Desse modo, você conseguirá tudo. 

— Frank Herbert, no Messias de Duna

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Diferença de grau

O enunciado intrincado dos legalismos desenvolveu-se em torno da necessidade de esconder de nós mesmos a violência que temos a intenção de dirigir uns aos outros. Entre privar um homem de uma hora de sua vida e privá-lo de sua vida existe só uma diferença de grau. Foi cometida uma violência contra ele, foi consumida sua energia. Eufemismos elaborados podem disfarçar a intenção de matar, mas, por trás de todo e qualquer uso do poder para afetar outra pessoa, resta o pressuposto supremo: “eu me alimento de sua energia”. 

— Frank Herbert, no Messias de Duna

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Em um trem desgovernado, um bandido discursa antes de pular fora

Como é que é? Ninguém mais quer se mexer? Tá todo mundo com medinho de morrer? Mas vai morrer! Porque o trem não vai parar e ninguém vai ter peito de saltar dele andando. Me dá até vontade de rir. Vocês passam a vida esperando pela morte dentro dessa geringonça. Esse trem não para, seus bestas. Tá sempre andando com vocês. Vocês pensam que entram e saem dele todo dia, mas estão enganados! Vocês já nasceram aqui dentro. E tão sempre nascendo pra encher essa lata velha que carrega vocês. (Ri.) Vocês estão sempre resmungando que essa lata não presta, tá sempre atrasada e isso e aquilo, mas tão só enchendo a lata, nascendo e enchendo ela com a cara de vocês, com a covardia de vocês, o suor fedorento e a merda de vocês. Até que um dia ela arrebenta! E vocês resmungando da porra do atraso. Seus merdas. Esse trem não tem que obedecer horário nenhum. Não sabem disso? Não sabem? Aqui dentro não tem tempo. Que que vocês são: tu é pedreiro, velho? Constrói casa, edifício, constrói? Constrói merda nenhuma. Tu nunca saiu daqui. Tuas paredes são essas. Tu levantou elas e elas te fecharam. Sai daqui, pedreiro, sai. Sai nada, pensa que sai. Num pensa que é saltando direitinho nas estações que você se livra das paredes, não. Elas vão atrás de ti. Lugar de macho na briga é brigando dentro dela pra sair com a vida nos dentes. Tem que furar caminho. Saltar do trem em movimento.

— n'O último carro, do João das Neves