terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Digladia-se com sonhos?

Peleja com sombras?

Move-se numa espécie de sono?

O tempo escapuliu.

Sua vida foi roubada.

Ocupou-se de ninharias,

Vítima de seu desatino. 

— Frank Herbert, no Duna

domingo, 29 de novembro de 2020

Profundamente arraigada

Qualquer coisa fora de você é o que você enxerga e nisso pode aplicar sua lógica. Mas é uma característica humana que, ao confrontarmos problemas pessoais, as coisas mais pessoais e profundas sejam as mais difíceis de submeter à análise da lógica. Nossa tendência é andar às cegas por aí e jogar a culpa em tudo e todos, menos na coisa profundamente arraigada que de fato está nos roendo. 

— Frank Herbert, no Duna

sábado, 14 de novembro de 2020

Dealing With Demons I, do Devildriver

Os caras do Devildriver sabem que o inferno está vazio porque os demônios estão todos aqui, e sabem também que Deus ainda está em Seu sétimo dia e sem previsão pra acordar, então estamos por conta e precisamos saber a etiqueta certa no trato com todo tipo de cães baixos, daí a necessidade desse álbum, obrigado.

"Keep away from me" quase transforma o trampo em um disco de uma música só; numa primeira escutada, ela ofusca todo o resto e reina no repeat; a trilha para a caminhada, para os dentes trincados, para o punho cerrado. Mas um pouco depois você aprende a amar as bonitas "Nest of vipers" e "Wishing", deve funcionar bem com novos ouvintes. E depois de semanas, você percebe que tem ouro escondido na "Vengeance is clear".

Em 2021 chega a parte 2 deste trato. Necessário.   

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Em ruínas, o grito

Então aquele silêncio distinto, imenso vazio dentro da tarde, provocou nele primeiro um sentimento de desconforto. Em seguida, veio a insegurança, a dúvida sobre sua situação. Estava na sua própria cidade, ou caíra de repente dentro de um pesadelo? Quando o homem duvida, o seu mundo cai em ruínas, desaparecem os pontos de apoio, os suportes familiares e ele se balança como boneco João-teimoso. 

O desconforto surgiu e ele teve vontade de gritar. Mas, se gritasse, iriam achar que ele estava louco. Loucos são eliminados dos grupos normais. Ele queria gritar. O ar que enchia o seu corpo precisava ser expelido. Sentia-se como o pneu que suporta vinte e duas libras e está com trinta e cinco, a ponto de estourar. Os músculos do seu peito, a carne toda, doíam, dentro da tensão. Então, gritou. 

— No conto com cara de crônica O homem que gritou em plena tarde, do Ignácio de Loyola Brandão

domingo, 8 de novembro de 2020

Under A Godless Veil, do Draconian

Agnosticismo em pauta nesse disco.

Meu sangue é pouco: será que tem uma forma de injetar a pesada "The sacrificial flame" nas veias? Bem enquanto descanso meu corpo em decadência e uivo contra um deus que inventou morte, desgosto e dor. Será? Não sei. Divago. Divago de olhos fechados com "Sleepwalkers". Olhos fechados e outros sentidos nublados. Isso porque você não escuta a voz de Heike Langhans com a audição, não mesmo. Quando ela canta, espíritos se dobram. 

Forte destaque para "Moon over Sabaoth" e "The sethian". 

Susano Correia uma vez disse que a melancolia produz mais arte que a raiva, e talvez seja verdade. E o Draconian não vê problemas em unir as duas coisas. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Quem?

O próprio homem? A serpente? A árvore? Quem plantou a árvore? 

Isso aqui parece um lamento do Caim.

domingo, 18 de outubro de 2020

Quarentena séria?

(Quando o isolamento era algo sério) Um grupo caricato combina uma reunião por vídeo chamada no Zoom. Leonardo, o anfitrião, já está na sala online, câmera aberta. Espera enquanto os demais se conectam. Wagner e Hugo são os primeiros a abrirem suas câmeras.

LEONARDO: E aí gente? Parem de timidez! Como vocês estão de quarentena?

WAGNER: Querendo ir no bar. Não dá pra beber álcool em gel, cara.

LEONARDO: E você já tentou?

WAGNER: Beber álcool em gel?!

LEONARDO: Ir no bar!

WAGNER: Ah, já. Rodei de moto por aí. Todos fechados e sem previsão pra voltar.

HUGO: (para Wagner) Querido, eu era assim também.

WAGNER: Lá vem...

HUGO: Não, sério. Eu vivia nos bares. Quando encontrei Jesus, me libertei disso. Mas hoje entendo que não era só uma questão de bebida...

WAGNER: Era a irmandade!

HUGO: Isso!

WAGNER: A maior das abstinências, irmão. Bebida a gente vai no mercado e compra. Agora esta manifestação aqui... eu quero muito viver isso.

LEONARDO: Que bom! Convoquei as pessoas certas então!

Karen abre sua câmera.

KAREN: Vocês estavam falando sobre ir no mercado? Eu não paro de ir no mercado! Se fecharem os mercados o povo aqui de casa morre. Eles comem horrores! Sabem aquelas visitas chatas que nunca vão embora? Então.

LEONARDO: Fala pra eles maneirarem. Ficar só em casa, comendo e sem exercício dá ruim pra saúde...

KAREN: Você precisa me ver na cozinha, nunca antes fiz tanto exercício! Ah, tô cansada disso tudo.

LEONARDO: Mas você vai com a gente, né?

KAREN: Claro! É só falar pra família aqui que vou no mercado. É assim que consigo sair sem suspeitas. Mas, sério, posso ir no mercado e comprar algumas coisas complementares...

LEONARDO: A gente tá bem abastecido. Acho que não falta nada.

KAREN: Sempre falta alguma coisa, vai por mim.

WAGNER: O que tá faltando é esse povo entrar na reunião!

LEONARDO: Calma, Wavá.

WAGNER: Eu já queria ir agora!

Eliana abre sua câmera.

ELIANA: Oi, gente.

WAGNER/LEONARDO/KAREN/HUGO: Olá/Bem-vinda/Tudo bom?/Bom te ver...

ELIANA: Tudo bem. Olha, obrigada pelo convite. Eu sempre quis participar de algo assim, mas com a rotina de antes... não tinha como... e... nossa... vocês sabem como me emociono fácil... desculpem...

WAGNER/LEONARDO/HUGO: Não, não chora/Você tem um bom coração/Não fica assim...

KAREN: Eu me emociono também, viu. Sempre que vejo a louça que acumula aqui em casa fico com vontade de chorar.

WAGNER/LEONARDO/HUGO: É a vida/Complicado/Normal/Acontece...

Gisele abre sua câmera.

LEONARDO: (para Gisele) Ei você, bem?

GISELE: Não. Não mesmo. Acho que meu coração parou de bater de tanto tédio.

HUGO: Até um tempo atrás eu era assim também. Mas então encontrei Jesus e --

WAGNER: Meu Pai!

LEONARDO: (para Gisele) Logo você se anima, prometo. Se não acontecer, garanto o seu dinheiro de volta.

GISELE: Não me façam querer cortar os pulsos, hein!

ELIANA: Ai, não fala essas coisas...

WAGNER: Aqui não é rede social. Fica tranquila.

KAREN: Vocês são muito dramáticos. Vão limpar as hélices de um ventilador pra verem o que é difícil de verdade!

...


A artimanha aqui é fazer você terminar de ler esse experimento na página da Influxo, obrigado e até um dia. 

domingo, 6 de setembro de 2020

O autointitulado do Oceans Of Slumber

A música dessa banda é meio progressiva, você se perde na melodia, não fixa logo de cara. Então acontece uma agradável surpresa quando você pensa ter se acostumado e de repente, na segunda metade da faixa, os versos mudam de um jeito, a atmosfera vira outra, que você não consegue fazer nada que não seja apenas contemplar em paralisia toda aquela passagem que sangra pra fora o veneno e te deixa uma catarse. O resultado é voltar e escutar de novo. E de novo. 

Repare em "A Return To The Earth Below" e "To The Sea".

Um novo disco de uma banda que só melhora. 

 

domingo, 26 de julho de 2020

Alguns dizem...

... que a vida criativa está nas ideias; outros, que ela está na ação. Na maioria dos casos, ela parece estar num ser simples. Não se trata do virtuosismo, embora não haja nada de errado com ele. Trata-se de amor por algo, de sentir tanto amor por algo — seja por uma pessoa, uma palavra, uma imagem, uma ideia, pelo país ou pela humanidade — que tudo o que pode ser feito com o excesso é criar. Não é uma questão de querer; não é um ato isolado da vontade. Simplesmente é o que se precisa fazer. 

— Clarissa Pinkola Estés, no Mulheres que correm com os lobos

domingo, 5 de julho de 2020

Caído

O mundo gira... até que ele se encontre no não-espaço, no não-tempo: o local supremo da criatividade. Com um pouco de memória, ele começa o serviço. Sobre os seus ombros está a luz dura, quase divina, da criação. Mas é um trampo pesado, caótico, ele se desencontra, mas em algum momento acha foco. Olhos bem abertos: ele pode ver algo que não podemos. Ao trabalho, mãos no detalhe; pois você sabe quando alguém está fazendo algo direito com base na agilidade das mãos. O júbilo ao concluir, o êxtase; ninguém ali para contemplar aquela glória, pois é como a canção diz, estamos sozinhos e não há celebração para o condenado. Tudo bem. Após o êxtase, a contemplação do fim. Agora a luz é outra: a luz quente da destruição. Ele queima a própria criação. Qual o sentimento nisso? Ele parece liberto de uma ideia, de significados, do passado; ele parece satisfeito. Caído, criou e destruiu e se libertou. É isso?

terça-feira, 9 de junho de 2020

The punisher, do Steve Lightfoot

Ele se alimenta da dor; quanto mais sofre fisicamente e emocionalmente, mais capaz fica. Mais mortal. A ira dele é santa. Uma liberação. Gera espanto, fascínio. Mesmo você não sendo fã de violência, você admira aquele sangue, aquela energia, aquele fôlego. Você admira porque logo depois de assimilar a ideia de vingança, de entendê-la, você finalmente está pronto para colocar suas emoções em cada soco, em cada tiro, em cada cair e levantar. Seguindo a lei de que as melhores estórias mexem com o corpo do espectador: aqui, enquanto você assiste, seu punho se fecha sem o seu comando. 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Bad education, do Cory Finley

O protagonista carismático em que todos confiam é cuidadosamente captado várias vezes de perfil, como se houvesse um lado da sua face que não podemos ver. Ele cuida bem desse rosto, no detalhe. Até uma cirurgia foi feita; símbolos para um personagem mascarado.

Mas o melhor é o discurso que ele tem dentro do peito. A sujeira é justificável do ponto de vista de quem é sujo. 

A sujeira cria o sistema e a beleza e o sorriso e a dedicação naquilo que se faz ou é o oposto?

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Lúdico

Ruim separar um único e pequeno trecho desse tão eloquente livro, mas vamos lá:
Não é o bom comportamento, mas a atividade lúdica que é a artéria central, o cerne, o bulbo cerebral da vida criativa. O impulso para o lúdico é instintivo. Sem o lúdico, não há vida criativa. Com o comportamento restrito ao "bom", não há vida criativa. Quando estamos sentadas sem nos mexer, não há vida criativa. Quando falamos, pensamos e agimos apenas com modéstia, não há vida criativa. Qualquer grupo, sociedade, instituição ou organização que incentive as mulheres a desprezar o que for excêntrico; a suspeitar do que for novo e incomum; a evitar o que for inovador, vital, veemente; a despersonalizar o que lhe for característico, estará à procura de uma cultura de mulheres mortas. 
— No Mulheres que correm com os lobos, da Clarissa Pinkola Estés

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Aniversário

The fall of hearts, do Katatonia. Desde 2016 me empolgando com esse instrumental, essa "Old heart falls" apertando minha garganta desde 2016. 

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Quadra, do Sepultura

Um atropelamento sonoro desses funciona melhor se você estiver sentindo muito ódio. Então pense nos hipócritas e nos fanáticos políticos/religiosos. Pense na sociedade do cansaço em que você vive. E aí dê o play com um soco. "Means To An End" é ok, mas a supremacia está oculta nas "Agony Of Defeat" e "Guardians Of Earth".

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Spiritual Instinct, do Alcest

Atmosfera. A voz é quase uma aura por trás da cozinha instrumental, até o momento que deixa de ser e passa a invocar algo que, se você fechar os olhos, será que irá se ver correndo em uma floresta ou saltando do topo de uma cascata? Espiritualidade em pauta. A faixa título e a "Les jardins de minuit" são proibidas para ouvidos incautos.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

City Burials, do Katatonia

Como de costume, a impressão é que tem 3 músicas dentro de uma única faixa: os versos oscilam, caóticos; como um fluxo de pensamento... e não é lá, nos pensamentos, que cidades inteiras são construídas e enterradas? Compreensível o pouco peso deste que é um disco menos metal e mais contemplação. Destaque para "Neon epitaph", "The winter of our passing" e "Behind the blood".

domingo, 19 de abril de 2020

Ver-se

Todo homem se angustia com a ideia de solidão, do desconhecido, da morte — da sua morte — e sente uma necessidade constante de ser amado e de se sentir existindo, vivendo. Ele projeta sobre os outros seus próprios pensamentos, suas emoções, seus sentimentos, e o contato direto (ou imaginário) com seus semelhantes tranquiliza-o, certificando-o de sua existência real. Ver e escutar os outros, finalmente, é escutar-se e ver-se (todos nós somos um pouco mais ou menos narcisistas). A necessidade de se ver liga-se também à necessidade consciente ou inconsciente de se conhecer melhor para melhor se julgar. Se por vezes temos horror de espelhos e de ver-nos a nós próprios, é talvez porque isso nos mostra impiedosamente a imagem (mesmo que invertida, em termos de direita/esquerda) de nosso envelhecimento, que nos recorda a ideia de nossa morte, que no mínimo nos repugna, pois o envelhecimento vai contra o nosso desejo de agradar, dito claramente, contra o nosso desejo de sermos amados.

— Gérard Betton, em um filosófico parênteses do Estética do cinema

quinta-feira, 9 de abril de 2020

The man in the high castle, do Frank Spotnitz

Melhor que o livro e com os temas que o Philip K. Dick adorava: empatia como arma (Juliana), metalinguagem (Tagomi), agir de acordo com uma programação (Kido), problemas de identidade (Joe, Frank), e um jeito meio desdenhoso de fechar os arcos — como que na vida real. 

Aliás, toda estória, não importando a época/mundo em que se passa a ficção, conversa com a vida, com o tempo em que foi criada. Então essa série, que começou em 2014 e terminou ano passado, fala sobre guerra, censura, aparência, dificuldade de confiar. Fala sobre sonhar com um mundo melhor ou ao menos um mundo diferente. A polaridade bem vs mal é uma ingenuidade. O que existe mesmo é o menor mal vs. o maior mal. 

sábado, 14 de março de 2020

1917, do Sam Mendes

Planos sequência tão bons que valem um Globo. Ademais, aí está um personagem que atravessa um monte de coisas: ele passa pela lama, ele passa pelo fogo nas estruturas, ele passa pela água; caminha através dos vivos e se arrasta por cima dos mortos; ele é enterrado e se levanta, como que ressuscitado. O que o faz continuar tão vivo? A missão, o dever? A família em fotos junto ao peito? Ou o fato de... mover, sempre?

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

sábado, 4 de janeiro de 2020

Odin disse:

Apenas a mente sabe
o que está junto ao coração;
o homem está só consigo mesmo.
Não há pior enfermidade
para qualquer homem sábio
do que não estar satisfeito com nada.

— Hávamál, As Palavras do Altíssimo