domingo, 18 de fevereiro de 2018

As Máscaras de Deus, de Joseph Campbell

Marcos. Aquelas coisas que acontecem e te mudam. Você era uma pessoa, então de repente é outra. As Máscaras de Deus é tipo um marco: a visão que você tem do espiritual, desde a mais remota mitologia até a mais recente crença institucionalizada, muda completamente após essa sólida leitura. Ideal para os arqueólogos culturais insaciáveis, aqueles que sempre querem saber mais, as origens, os porquês. Ideal também para contadores de histórias, já que a flecha aqui tem por alvo as primeiras narrativas do ser humano e a sua pronta disposição em crer, disseminá-las e sincronizá-las com outras narrativas vizinhas. A mais antiga arte, de contar histórias, é rasgada até os ossos nessa série de livros.

Parênteses: essa leitura funciona muito melhor para quem já é iniciado n'O herói de mil faces — que é um único livro, relativamente curto. Enquanto O herói avalia as narrativas mitológicas de maneira psicológica, As máscaras olha para o lado cultural dessas narrativas e seus impactos no meio em que foram criadas. 

A saga começa na Mitologia Primitiva. Perseguição, sacrifício, uma árvore, uma proibição (fruto, caixa que não pode ser aberta, "não olhe para trás, Orfeu", "não olhe para trás, Ló"), um salvador, uma mãe miraculosa... Imagens do tipo nasceram nas mais velhas comunidades, uma galera que curtia plantar e comer da terra, a Mãe. A figura feminina tinha poder naquele tempo: ninguém podia entender uma gravidez, por exemplo, de modo que a mulher era um mistério nível sobrenatural para qualquer ajuntamento. A maioria dos seres espirituais eram, então, deusas. Mas então essa galera começou a caçar, começou a guerrear com outras tribos, armas, armadilhas, fogo, e aí vieram os deuses masculinos e de repente parecia mais interessante dominar do que cultivar, de modo que o masculino ganhou destaque. Essa é apenas uma das tantas imagens históricas desse primeiro volume. Destaque para o sistema de poder de várias tribos, onde geralmente o mais velho, o mais místico (xamã) ou o melhor guerreiro lideravam. Sem contar os relatos de inúmeros ritos de passagem, desde maioridade à casamento — cerimônias que, por mais longínquas que sejam, ecoam em vários costumes atuais. 

Então, Mitologia Oriental. Sofisticada, essa é a palavra. A filosofia oriental, os mitos dessa galera do lado de lá, sempre estiveram à frente do restante do mundo. Aqui Campbell começa falando da mitologia no Egito. Jamais houve uma ideia de morte tão rica quanto à desses caras, jamais houve tumbas tão simetricamente concebidas. Lá, quando um líder morria, seus súditos morriam também, todos passavam para o Além juntos, em respeito ao elo que tinham em vida — simplesmente animal. Já temos nesse volume alguns sincretismos, algumas mitologias que migraram de um lugar para outro e evoluíram, como a dos Vedas, mais tarde incorporadas na mitologia indiana — aquela que tem a maior riqueza cósmica, disparada, absurdo mesmo. Surgem alguns salvadores andarilhos, Buda sendo o mais ilustre nesse volume, Jesus aparecendo no próximo, com interessantes paralelos das duas histórias — sempre tendo em mente a evolução comercial da Europa com as estradas romanas, que levavam não apenas bens de consumo de um povo ao outro, mas também narrativas boas de serem adaptadas.

Mitologia Ocidental. Brutal. Enquanto no oriente o pessoal era mais zen, pensando em propósito de vida, morte, macrocosmo, no ocidente ainda temos as velhas histórias de dominação e guerra vindas de épocas primitivas. Zeus, por exemplo, enquanto não está tocando raio nos outros está se deitando com uma jovem (instintos primitivos) e o Velho Testamento é forrado com guerras e sentenças de morte. Neste volume fica clara a ascensão patriarcal nas narrativas sobrenaturais, com o feminino antes cultuado se tornando o monstro (Tiamat, Gorgona). Vale também uma atenta leitura quando Joseph começa a falar da Suméria, o berço de onde brotou inúmeras histórias que reaparecem tanto na Babilônia como no livro do Gênesis. O autor chega a falar do Islamismo também e, novamente, muito interessante os paralelos de Maomé com qualquer outro salvador andarilho. 

E Mitologia Criativa, que pega uma época medieval em que a crença se torna algo fortemente institucionalizado e mesmo assim brotam, aqui e ali, narrativas mundanas de coragem e amor, nada relacionadas com a religião, que mexeram com o imaginário popular, de modo que hoje sabemos sobre Lancelot e Guenevere, por exemplo. O livro que fecha As máscaras de Deus mostra como a mitologia evoluiu ao status de arte declarada, uma poesia, um canto; não mais uma coisa à ser venerada, com regras que devem ser obedecidas e punições para quem se desvia do caminho — mas sim um objeto à ser contemplado, estudado, sentido. 

São quatro calhamaços de alto valor, caros mesmo na metade do preço em feiras de livro, mas, meu, vale cada centavo. 

O estudo comparativo das mitologias do mundo nos compele a ver a história cultural da humanidade como uma unidade; pois achamos que temas como o roubo do fogo, o dilúvio, a terra dos mortos, o nascido de uma virgem e o herói ressuscitado estão presentes no mundo todo — aparecem em toda parte sob novas combinações e se repetem como os elementos de um caleidoscópio. Além do mais, enquanto nas histórias contadas para entretenimento tais temas míticos são tomados sem maior seriedade — num óbvio espírito jocoso — quando aparecem em contextos religiosos, eles são aceitos não apenas como absolutamente verídicos, mas mesmo como revelações das verdades das quais toda cultura é uma testemunha viva e de onde derivam tanto sua autoridade espiritual quanto seu poder temporal (...) Cada povo recebeu seu próprio desígnio sobrenatural, comunicado a seus heróis e provado diariamente nas vidas e experiências de seus membros. E, embora muitos que se curvam de olhos fechados nos santuários de sua própria tradição esmiúcem racionalmente e desqualifiquem os sacramentos de outros, uma comparação honesta revela imediatamente que todos foram criados de um único fundo de motivos mitológicos — selecionados, organizados, interpretados e ritualizados de modo diferente, de acordo com as necessidades locais, mas venerados por todos os povos da terra.  
Mitologia Primitiva