sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Em um trem desgovernado, um bandido discursa antes de pular fora

Como é que é? Ninguém mais quer se mexer? Tá todo mundo com medinho de morrer? Mas vai morrer! Porque o trem não vai parar e ninguém vai ter peito de saltar dele andando. Me dá até vontade de rir. Vocês passam a vida esperando pela morte dentro dessa geringonça. Esse trem não para, seus bestas. Tá sempre andando com vocês. Vocês pensam que entram e saem dele todo dia, mas estão enganados! Vocês já nasceram aqui dentro. E tão sempre nascendo pra encher essa lata velha que carrega vocês. (Ri.) Vocês estão sempre resmungando que essa lata não presta, tá sempre atrasada e isso e aquilo, mas tão só enchendo a lata, nascendo e enchendo ela com a cara de vocês, com a covardia de vocês, o suor fedorento e a merda de vocês. Até que um dia ela arrebenta! E vocês resmungando da porra do atraso. Seus merdas. Esse trem não tem que obedecer horário nenhum. Não sabem disso? Não sabem? Aqui dentro não tem tempo. Que que vocês são: tu é pedreiro, velho? Constrói casa, edifício, constrói? Constrói merda nenhuma. Tu nunca saiu daqui. Tuas paredes são essas. Tu levantou elas e elas te fecharam. Sai daqui, pedreiro, sai. Sai nada, pensa que sai. Num pensa que é saltando direitinho nas estações que você se livra das paredes, não. Elas vão atrás de ti. Lugar de macho na briga é brigando dentro dela pra sair com a vida nos dentes. Tem que furar caminho. Saltar do trem em movimento.

— n'O último carro, do João das Neves

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