terça-feira, 21 de maio de 2013

Fluam, minhas lágrimas, disse o policial

No romance FLUAM, MINHAS LÁGRIMAS, DISSE O POLICIAL, Philip K. Dick explora os limites entre percepção e realidade, criando uma impressionante distopia na qual Jason Taverner, um dos apresentadores mais populares da TV, um dia acorda sozinho num quarto de hotel e percebe que tudo mudou; que se tornara um ilustre desconhecido. E pior. Descobre que não há qualquer registro legal de sua existência. Dividido agora entre duas realidades, ele vê-se obrigado a recorrer ao submundo da ilegalidade enquanto tenta reaver seu passado e entender o que de fato aconteceu, dando início a uma estranha busca pela própria identidade. Ao unir à trama desconcertante uma sensível incursão no comportamento e nas emoções humanas, Philip K. Dick prende o leitor e faz desse livro um de seus trabalhos mais comoventes. Escrito em 1974, FLUAM, MINHAS LÁGRIMAS, DISSE O POLICIAL foi publicado pela primeira vez no Brasil nos anos 1980, sob o título Identidade Perdida: O Homem que Virou Ninguém. O livro foi indicado aos prêmios Nebula, em 1974, e Hugo, em 1975, ano em que venceu do prêmio John W. Campbell como melhor romance de ficção cientifica.

Imagine você, num determinado ponto de sua vida, alcançando um bom status social. Pode ser  através de uma realização profissional, um grande feito público ou qualquer outra coisa. O fato é que você é conhecido, estimado, respeitado e por ai vai. Agora, imagine sofrer um acidente, ser levado para o hospital e passar a noite lá. No dia seguinte, quando você acorda, não está mais no hospital e sim num quarto de hotel barato um hotel. Estranho. Mas você se sente bem. Mas... Ok, você pega o celular e liga para um conhecido, um familiar talvez, alguém que estava com você no hospital. E você pode falar algo como "o que aconteceu? Acordei num... hotel? O que aconteceu?". Daí as coisas ficam mais estranhas pois a pessoa do outro lado da linha pergunta "quem é você?", e você solta uma risada, pois sabe que aquela pessoa tem senso de humor e deve estar brincando, então, fala algo tipo "como assim 'quem sou eu'? Tá maluco? Sou eu!", e solta uma risada para disfarçar a tensão.

Mas a pessoa pretende continuar brincando, e fala que não te conhece. Estava com você ontem a noite, e agora tá dizendo que não te conhece. E como você já esta ficando impaciente com esse teatro, você xinga a mãe da pessoa e desliga o telefone. Olha na lista de contatos e disca outro número. Enquanto chama, você verifica seus bolsos, sua carteira. Ufa, o dinheiro está lá mas... só o dinheiro. Os documentos sumiram, qualquer coisa que serviria para lhe identificar desapareceu. Antes de você pensar, ouve-se o "alô". Você fala "oi, tudo bom?", pra poder iniciar a conversa. E a pessoa fala "tudo bom. Quem é?".

Como assim quem é?, você só pensa isso, não fala. Suspira e resolve dizer: "sou eu!".

"Quem?", pergunta o seu conhecido. "Foi engano", e desliga.

Estão brincando comigo, você obviamente pensaria isso.

Liga para um terceiro número. A mesma coisa acontece. Seja quem for ─ familiar, chefe, subalterno, amigo ─ todos falam a mesma coisa. "Quem?", dizem eles, como se não te conhecesse. E de repente você percebe que... não, não pode ser... mas você percebe que, de fato, eles não te conhecem. E quando você sai do hotel e tenta falar com quem for, percebe que ninguém nunca ouviu falar de você. O que é um absurdo, pois você é uma pessoa conhecida. E no entanto, ninguém te reconhece. Você tenta reaver seus documentos, e as diferentes atendentes em diferentes órgão públicos dizem que não existe nenhum registro, cadastro ou qualquer outra coisa no seu nome. Em outras palavras: você não existe.

Você se lembra perfeitamente da sua vida, das pessoas nos seus ciclos de convívio, lembra de quem era e tudo que fez. Mas você. Não há registros seus ─ físicos, e na memória das pessoas.

E então, o que você faria?

Isso tudo acontece com Jason Taverner, protagonista desta obra premiada de Philip K. Dick.  

Jason era sua reputação. E quando perdeu isso, perdeu tudo. Antes, todos sabiam quem ele era, todos sabiam de seu imenso carisma. Mas, numa virada de noite, ele se tornou uma pessoa comum. Comum e sem nada. E isso é um problema enorme na atmosfera de ficção cientifica elaborada no livro, pois o mundo (ou ao menos os EUA) é restringido por uma policia opressora. E essa policia prende qualquer sem identificações.

Jason passa, então, a tentar recriar sua identidade. Vai numa pessoa que faz documentos provisórios ─ só para ele ter alguma coisa durante esse tempo em que ele tenta entender o que está acontecendo. Os documentos são falsos, mas com a identidade verdadeira dele ─ ou, a identidade que ele pensa ter. Pois, será mesmo que ele era o famoso Jason Taverner? Será que não era tudo imaginação dele? A grandeza do seu nome... realmente existiu? Se sim, porque ninguém se lembra?

Questões. Dick adora trabalhar com elas. Adora trabalhar com conflitos internos do ser humano, sua percepção de mundo, de realidade. É aquela coisa do filme Matrix: o que é real? Só o que eu posso ver e cheirar e tocar? Uma memória é a lembrança de algo real ou uma projeção da minha mente? O que vejo, o mundo em que vivo, é realmente do jeito que os meus sentidos o leem, ou estou sendo enganado?

O livro acompanha a trajetória deste homem “esquecido”, e, mais pro meio do tomo, entra o ponto de vista de um policial que esta investigando Jason. Um policial que não achou nenhum registro do homem, e embarca na loucura de tentar entender como isso é possível. Afinal, a polícia tem acesso a todos os registros de todos os seres humanos, com os mínimos detalhes. E, no entanto, cadê, qualquer coisa, deste sujeito chamado Jason? Só pode ser obra de terrorista, pensa o policial que atende por Felix Buckman.

E enquanto Jason é investigado, ele passa brevemente pela vida de meia dúzia de pessoas comuns, cada qual com seus problemas diversos; mas uma delas, misteriosamente, lhe conhece. Essa pessoa sabe que ele é ─ ou quem ele foi. E a explicação de tudo jorra de uma vez. E antes que a estória se perda, antes que o leitor comesse a pensar muito, a raciocinar as amarras elaborando interpretações, o livro acaba. Rápido, de modo que você nem sente o final. É como se tudo de importante já tivesse ocorrido no decorrer da saga de Jason Taverner.

De fato, Dick soube escrever algo leve e rápido, capaz de prender o leitor até a última explicação, até a última cena. E um ponto interessante é narrar tudo isso num ambiente sofisticado e futurista, mas que é um mero recurso de fundo, sem ser muito explicativo ou importante. É como se Dick estipulasse um futuro óbvio, por isso nem explica o ambiente a volta ─ deixa para que o leitor faça a própria interpretação.

Belo livro, grande autor.

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