sábado, 1 de setembro de 2012

Sonata do bardo 2

13º dia do 7º mês, Luvitas. Ano 1400.


Eu fiquei com o broche do membro do Conselho de Fortuna, Larien tratou do corte na coxa, Rark conseguiu limpar as unhas, Grilo já dava indícios de um resfriado, a neve não parava de cair, ainda não tínhamos um nome e em um dia de cavalgada estaríamos em Luvian.

O plano era simples: ficaríamos naquela vila por uma volta de lua. Seria o suficiente para uma dúzia de boas apresentações.

E por falar em apresentações, estou devendo algumas palavras descritivas sobre mim e meus camaradas. Mas acho que isso não pode ser feito de uma vez. Decidi que posso apresentá-los bem devagar. Não tem porque apressar as coisas.

Voltando:

Rark cavalgava à frente. Era experiente com terrenos e conduzia seu corcel atento a qualquer sulco encoberto de neve capaz de quebrar uma pata do animal. E não podíamos perder outra montaria, o que nos restava ir com muita calma, seguindo as pisaduras que Rark marcava.

Eu vinha logo atrás, guiando o animal que fora de Grilo. O rapaz me cedera seu cavalo e eu aceitei com um rápido agradecimento, mas sabia que aquilo não era simples bondade. Pois logo depois Grilo se convidou a montar o mesmo cavalo que Larien.

Menino esperto.

Seguiam atrás de mim, fechando a fila.

Olhei sobre o ombro apenas pra ver se iam bem. E lá estava Larien segurando as rédeas e Grilo segurando Larien.

Menino esperto.

Exceto que não percebe que Larien nem percebe ele, e Larien não percebe que Grilo tem uma queda por ela.

Que confusão.

Se continuássemos naquela marcha alcançaríamos a vila na madrugada. Mas Rark decidiu dar férias temporárias aos cavalos e não correr riscos com a escuridão das estradas. Então, paramos. Foi um saco fazer uma fogueira ali, mas conseguimos. Comemos parte de nossas provisões, treinamos três músicas do nosso repertório e fomos dormir.

Rark ficou com o primeiro turno de vigia, enquanto ressonávamos e tremíamos de frio, cada um na sua palha meio húmida, todos cercando a fogueira. O segundo turno seria o meu, mas muito antes da hora eu me levantei e liberei Rark. Justifiquei:

─ Totalmente sem sono ─ disse pra ele, e assumi o posto.

Recostei numa árvore caída e fiquei pensando na vida, enquanto aguardava o amanhecer. Naquela noite a neve deixou de cair e somente os ventos ficaram. Um amontoado de nuvem foi soprado pra longe e o céu, naquele instante, estava limpo. Meus olhos automaticamente buscaram pela lua. Dali, não conseguia contempla-la direito, então me levantei e caminhei um pouco, deixando meus colegas pra trás. Encontrei uma grande pedra, subi nela e pronto, estava realizado: observei; grande, redonda, tão perto que era possível ver suas imperfeições.

E quando se tem um encontro com a lua, parece que nada mais importa. Apenas fiquei ali, não sei dizer quanto tempo, hipnotizado pela luz branca.

Até que ouvi um som. Talvez uma folha sendo pisada ou galho balançado. Não sei explicar, mas tinha certeza que não era o vento.

Rapidamente me virei na direção do som e joguei uma mão para trás, buscando uma flecha na aljava... Não. Não estava comigo! Deixei as armas junto do alaúde junto das provisões junto dos meus amigos.

─ Quem ─

─ Sou eu.

Era Grilo.

─ Quase te matei agora, hein ─ ele disse, sorrindo da minha cara de susto.

─ Se eu estivesse armado, haveria uma mutualidade entre nós. Mas no seu caso não seria só um susto ─ fingi que estava intrigado enquanto o encarava de cima da pedra ─ Sem sono?

─ É. Tive uma sequencia de sonhos perturbadores.

Grilo subiu na pedra e olhou pra lua. Era jovem, como já disse antes, talvez com 18 invernos, mas tinha quase a minha altura. Era difícil ver em seu rosto sereno o estranho passado que ele um dia disse ter vivido.

O que sei de Grilo é que o rapaz foi abandonado pela família quando tinha 4 anos. Ele mesmo não se lembra da mãe ou de qualquer outro parente, se lembra apenas que no começo tinha uma família e uma pequena residência em algum ponto do reino de Ahlen. Depois, se lembra de fazer uma viagem de carroça e em determinado momento seus responsáveis deram ordem para parar a viagem, foram buscar algo do lado de fora e não voltaram. Ele ficou só, e daí tirou a ideia de que foi abandonado. Mas Grilo foi um órfão por menos de uma volta do sol: no mesmo dia em que foi deixado um bando de mercenários passava por aquela estrada.

Pela graça de Nimb, os malfeitores o adotaram como mascote. Mais tarde esse mascote se mostrou promissor, rápido com as mãos e de ouvido apurado, deixando então de ser um mero criado, virando um aspirante a membro daquela guilda. Um dos mercenários era um assassino profissional. Grilo me contou certa vez que o cara se dizia altamente procurado em Tamu-ra; um homicida que merecia alta recompensa na Ilha do Dragão, tipo alguém que já matou muita gente importante. Daí ele começou a treinar Grilo nas artes de um eliminador de vidas. O menino aceitou o treino de bom grado, ficando muito intimo de facas de arremesso. Mas, certo dia, o grupo de mercenários foi surpreendido por outro grupo de mercenários. Grilo conseguiu escapar com o assassino tamuraniano, e não souberam se mais alguém do bando sobreviveu depois da emboscada. Quando chegaram numa vila, alguém apontou para eles dizendo “são eles, são eles, santo Khalmyr, são eles!”, uma milícia bem armada veio e prendeu mestre e aprendiz. Grilo nunca entendeu essas coisas, fora tudo muito rápido; emboscada, prisão, e depois a execução do tamuraniano. E antes que chegasse sua vez de ir para a forca, Grilo conseguiu fugir.

─ Só lembro de uma coisa: Vi você numa cela. ─ ele disse enquanto olhávamos para a lua ─ Estava preso numa cela.

─ E onde você estava?

─ Não sei. Em um sonho eu não me vejo, apenas vejo os outros.

─ Tinha janela? ─ quando fiz a pergunta, ele se voltou pra mim, todo confuso. Bufei: ─ A cela, tinha janela na cela?

Grilo olhou para algum lugar no horizonte, tentando se lembrar.

─ Não. Sem janela. Era bem uma masmorra antiga. Pouca luz e abafada. Ah, e tinha um carcereiro careca, cheio de cicatrizes, com um machado de duas lâminas. E acho que ele não gostava muito de você.

─ Que bosta de sonho.

─ Pois é ─ ele sorriu e bocejou. Depois de um tempo: ─ Enfim, vou voltar. Talvez consiga dormir de novo.

Ele desceu da pedra e foi caminhando para onde os outros dormiam. Antes de sumi entre os arbustos, ele se virou e disse:

─ Pensei em um nome para o nosso grupo: Morphis. Que tal?

─ Bom. De onde tirou ele?

─ Sei lá. Talvez tenha sonhado com isso também. ■



Hoje. 31º dia do 12º mês, Aurea. Ano 1400.


É o último dia do ano. E me trouxeram mais tinta e papel. Então, estou escrevendo de novo.

E essa segunda parte da minha Sonata foi uma tentativa de contar, meio por cima, quem é Grilo. E algo que não tive tempo de entender naquele rapaz, era sua capacidade de avistar o futuro. Ele sonhou comigo numa cela, e cá estou, numa cela. Disse que não teria janela e disse que meu carcereiro seria uma paixão de pessoa. E essas coisas também se realizaram.

Um dia desses meu carcereiro careca e cheio de cicatrizes, exatamente como Grilo sonhara, me disse:

─ Ainda chegará o dia em que a ordem será dada e eu virei até aqui separar sua cabeça cheia de estrume do seu corpo. Vê a Senhora Serra, aqui? Veja bem as curvas dela. Sonhe com ela.

Ele é obcecado por mim. Quase todo dia, quando me traz papel e tinta a mando do seu superior, ele faz juras de amor como esta. Seu trabalho, até onde sei, é decapitar as pessoas. E ele esta sedento por ver minha cabeça rolando. E a Senhora Serra é o nome do seu machado de duas lâminas.

─ Sonhe com ela beijando seu pescoço ─ ele diz pra mim, segurando o machado contra as barras de ferro da minha cela que, abençoadamente, me protegem dele ─ Sonhe com isso. Sonhe. Pois ela te deseja imensamente.

Ele ficou um bicho no dia que estava entediado e pedi uma singela misericórdia:

─ Eu queria escrever ─ eu disse.

Logo depois o carcereiro socou uma parede e prometeu 13 formas diferentes de me matar com a Senhora Serra. Mas outro dia, um serviçal qualquer desceu na masmorra e eu falei com ele, repetindo que queria muito escrever algo.

Não sei explicar como, mas o senhor que me mantem prisioneiro aceitou o meu pedido através daquele serviçal: no dia seguinte o carcereiro me entregou uma folha, um pote de tinta e uma pena. Nem preciso citar a cara de desgosto do meu amado carcereiro.

─ Aproveite ─ ele disse me dando os itens ─ e escreva seus crimes antes que, você sabe ─ e tocou o machado de novo.

─ Claro. Meus crimes ─ arrumei os papeis e molhei a pena na tinta ─ Então vou começar com o dia em que encontrei sua mãe. Ah, não, espera, aquilo não foi um crime. Eu paguei direitinho quando terminamos.

Daí ele ficou vermelho, bateu nas barras, gritou e prometeu mais 13 formas de me matar com a Senhora Serra.

A primeira dezena das folhas foi amassada e queimada, depois de escritos estúpidos que me ocorreram. Então começaram a me dar menos papel. E, à dois dias, comecei a escrever essa Sonata. Não tenho ideia de quem ira ler, no futuro, depois que eu for executado.

É minha biografia escrita no último episódio da minha vida, e eu não sei se alguém vai ler.

Escriba sofre. Talvez por isso eu tenha escolhido a carreira de bardo.

Ao menos tenho um ouvinte: meu carcereiro e a Senhora Serra. Ontem, li para eles a parte um da Sonata do bardo. O carcereiro fez cara de mau, mas sorriu um sorriso de 7 dentes. Disse:

─ Tá uma merda.

─ É a minha vida, fazer o que.

E pela primeira vez rimos os dois juntos. Nada exagerado, pois ele ainda me odiava e eu idem. Mas já era alguma coisa.

Ah, e quando conversávamos eu descobri o seu nome.

Era Morphis. ■
 
 

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