quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O vazio chamado Rust Cohle

Marty é o cara imperfeito e por isso deveria ser o melhor personagem ─ mas não é. Rust, o perfeito, raciocínio rápido e sempre com algo pessimista a dizer, deveria ser o cara chato ─ mas não é.

O que torna Rust tão interessante?

Será a interpretação magistral do Matthew McConaughey ─ com seus transes psicóticos traduzidos em uma face gelada, a postura, a voz baixa, a forma em que fuma o cigarro, o jeito de cruzar as pernas num falso esforço de quem está realmente desconfortável mas resignado, e também com a mania de piscar o olho esquerdo antes do direito, não um tique, mas sim uma forma singular de demonstrar desdém ao que está sendo observado ─ será isso?

Ou será o texto de alto quilate escrito para o personagem? O Box de Séries compilou algumas das pérolas do Rust ─ uma perfeita mistura filosófica da qual nunca é possível ter certeza se o personagem realmente leva a sério. Trechos como este, de quando ele comenta a morte da filha:

“Sabem o que penso sobre minha filha agora? Querem saber do que ela foi poupada?
Às vezes, fico agradecido.
Os médicos disseram que ela não sentiu nada. Entrou direto em coma. E então, em algum lugar naquela escuridão, ela escorregou em outra, mais funda.
Não é uma maneira linda de morrer? Sem dor, como uma criança feliz.
O problema de morrer adulto é que você já cresceu. O dano está feito. É tarde demais.
Vocês têm filhos? [Ao que respondem que sim] Bem, vocês têm a confiança que deve-se ter pra tirar uma alma da não-existência para essa carne e para forçar uma vida nessa lixeira.
E, quanto à minha filha, ela me poupou do pecado de ser pai.”

Será? Bom, essas coisas todas colaboram, mas devo dizer que o principal, o que torna o personagem tão marcante, antes de todos os complementos, é o mistério. Quem ele é?

Você avança um pouco e descobre todo o drama que foi e a fé que se tornou a existência de John Locke depois que ele cai na ilha. Logo de cara você sabe o que Joe Carroll deseja e o porquê e o alcance de sua persuasão. E é louco mergulhar junto com Walter White num profundo poço moral, sem volta e que vai ficando cada vez mais sombrio, onde podemos acompanhar o professor mudando e mudando e mudando mais.

Mas e o Rust? O que é Rust Cohle?

É simplesmente por isto que ele é um dos melhores personagens da TV: por ser um grande e reticente vazio. Até onde vai sua experiência, suas habilidades? Ele realmente não dorme, só sonha? Quais sonhos? Com a filha, talvez (“Você acredita em fantasmas?”)? E qual é o lance do espelho minúsculo?

Ademais, a série é muito boa. Você não vai ver pirotecnias exaustivas (grandes tiroteios, carros explodindo) e aqui não há a necessidade de criar uma moral quando o caso se resolve, fazendo de um episódio uma pequena fábula, além de não ter um personagem deus ex machina que, do nada, tem um insight e resolve tudo nos últimos cinco minutos do show. Não. Aqui temos um caso que é resolvido de forma sóbria e realista, a ponto de conseguir passar a noção, a percepção, do labirinto de uma investigação de verdade: interrogatório com várias e várias pessoas, a necessidade de falar com todos os conhecidos e simpatizantes, criando uma rede, idas e vindas exaustivas, telefonemas, achar um pra chegar no outro, se infiltrar, dissimular, jogar verde, a coisa toda indo devagar mas aparentemente caminhando para algum lugar. Por falar nisso, tem uma sequência de tensão tão bem feita, no último episódio, que chega doer o peito de quem assiste: é lenta, uma perseguição em que o perseguido espera o perseguidor e você, telespectador, sente o cheiro, sente o estigma da morte brilhando, querendo levar os personagens que aprendeu a amar. O cenário é macabro, escuro, com ecos, nunca se sabe o que pode sair da sombra da direita ou mesmo cair do teto aberto. E a coisa vai tão devagar quanto as investigações, a perseguição nunca termina, não é interrompida, apenas flui, preparando terreno, o tempo aparentemente pausado, contrariando você, que quer tanto saber o que vai acontecer ─ tudo com o propósito sujo de te deixar imóvel até que o desfecho chegue.

Ou seja, True Detective, a série que tem um deus chamado Rust Cohle, vale muito a pena.

Até.

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