quarta-feira, 20 de abril de 2016

Monstro

Primeiro foi a morte do meu irmão e sua linda esposa, num trágico acidente de carro. Depois, foi a filha de dez anos que eles deixaram e que fui convencido a adotar, em memória do meu irmão. E por fim foi o AVC fulminante que pegou minha esposa, a deixando de coma.

Com tudo isso, me transformei.

Lembrava do idiota do meu irmão e me enfurecia dele ter partido e deixado responsabilidades para mim. Criar uma criança não é fácil. Por que aceitei? Nem sei dizer. E minha mulher? Acho que já não amava minha mulher. Ela se tornara um peso nas minhas costas: as máquinas que lhe ajudavam a respirar eram caras, estavam acabando com minhas economias e ela nunca se recuperava. Não dava para amar alguém naquelas condições!

Eu precisava respirar.

Então voltei a frequentar o Reduto do Rufos. Todo dia, após o trabalho, lá estava eu dizendo:

— A mais forte. Se possível uma que me mate em um gole.

Rufos me servia, rápido, um copo pequeno de liquido translúcido envenenado de álcool. Eu o virava em um piscar.

— Ainda estou vivo — dizia, decepcionado. E em desafio: — Deixe logo a garrafa aqui.

Eu já fui alcoólatra, dos bons. Com o passar do tempo, com o casamento, eu parei, superei, mas enfim voltei, voltei com vontade, bebendo até atingir o nirvana. E quando eu deixava o Reduto o que eu realmente não gostaria de atingir logo a seguir seria uma pessoa. Afinal o carro era novo, 32 parcelas para pagar ainda. Então eu orava: Jesus, que eu não atropele ninguém. E Ele sempre atendia o meu pedido.

Chegando em casa, não havia mais diálogo com o Altíssimo.

A filha do meu irmão — minha sobrinha querida — tinha apenas dez anos, mas já dava para ver como seria bonita. E pior, meu Deus, como ela parecia com a mãe! A mãe era uma mulher absurda, por vezes só um vislumbre dela já agitava meu sangue. Por que não foi eu o sujeito a me casar com ela? Por que ela teve que se relacionar com o idiota do meu irmão? Bom, não importava muito agora, ambos estavam mortos. Mas a filha, que era a perfeita réplica da mãe, estava lá, comigo.

Começou quando eu cheguei em casa bêbado pela primeira vez em muito tempo. Juro que ia dormir tranquilamente, no sofá, mas minha sobrinha bonitinha e inocente me chamou, dizendo:

— Tio, tem um monstro no meu quarto.

Vendo o seu rosto delicado e assustado eu me apiedei, mesmo estando no nirvana. Fui ver o que era. Ela apontou para o armário, afirmando que lá tinha um monstro voraz. Tropecei até o móvel e o abri com violência, só para ela ter certeza que não existia coisa alguma ali. Quando voltei minha atenção para a pequena algo nostálgico aconteceu. Uma agitação no sangue. Sobre o lusco-fusco do abajur que iluminava o quarto eu vi que ela estava de pijama, segurava uma pelúcia, os cabelos bagunçados.

Uma mulher — aos olhos de um bêbado como eu, que tinha pouco a perder.

Foi nesse dia. O início do meu mais novo vício. E isso eu fazia em memória da minha falecida e linda cunhada.

Toda noite, depois de chegar do Reduto do Rufos, eu ia procurar um monstro no quarto da minha sobrinha. Ela já estava à espera, quieta, encolhida, orando à Jesus. Se estivesse dormindo, eu a despertava.

— Vê? — eu sussurrava, um homem transformado, e já começava a baixar as calças. — Não há monstro.

O único monstro ali era eu.