quarta-feira, 24 de junho de 2015

Djoana, com D mudo (ou Controle de Rosto)

Ela estava na janela do apartamento quando Tchurum, com T mudo, apareceu lá embaixo. O homenzinho saiu da caminhonete com aquele eterno palito entre os lábios, levando debaixo do braço uma caixa vermelha. Foi abrindo a loja, deu bom dia pra uma senhora que passava e entrou. Por que ele atrasou tanto hoje?

Djoana, com D mudo, que estivera esperando por 20 impacientes e suarentos minutos, saiu da janela e desceu pelas escadas, de dois em dois degraus. Na rua, parou de correr e disfarçou. Atravessou normalmente e foi entrando na loja do Tchurum como qualquer cliente rotineira nada ciente das vendas especiais que ele fazia.

Ele já tinha sumido com a caixa vermelha.

─ Bom dia dona Djoana ─ disse Tchurum, embora ela o tivesse visto primeiro.

“Dona” Djoana ainda tinha 25 anos, por isso ficou irritada em ser chamada assim, por mais que fosse conhecimento geral que Tchurum chamava todas de “dona”. Ela não respondeu o homenzinho ─ sua forma amarga de punição imediata automática. E também não o fez porque não tinha tomado as Saudações de hoje. Foi logo dizendo:

─ Preciso de um Controle de Rosto.

Tchurum desviou o olhar, escapando.

─ Acabou ─ disse. 

─ Mentira ─ retrucou ela.

Tchurum se desvencilhou, indo para trás do balcão onde se sentia mais corajoso.

─ É verdade, dona. Já faz duas semanas que acabou. E além disso, estou parando de vender essas coisas. Se algum civiltar me pega, tenho que explicar um monte de coisa e posso até perder meu negócio. 

Djoana não ouviu direito depois do “dona”.

─ Eu tenho dinheiro, me dá uma cartela! Eu sei que você tem. Ei! Olha pra mim! Anda, não disfarça não! Mostra.

As últimas semanas foram tão tensas que ela tomara todo o estoque de Controle de Rosto sem se dar conta! Para a entrevista de hoje, precisaria logo de dois comprimidos. Assim teria certeza de que coisas más como incerteza, nervosismo e estresse não seriam desenhadas em seu rosto sem sua permissão na frente dos outros.

Precisava de um estoque novo, mesmo sabendo que a fatura do próximo mês viria estourada. Essas coisas são caras. Ela teria que fazer vários cortes, como deixar de comprar Amor a Vida e ao Próximo. Ela resolveria isso depois. O importante era o agora, já.

Anda! ─ gritou.

Tchurum reencontrou a voz:

─ Calma. Fica calma. ─ Mas não protestou. Ele abaixou atrás do balcão.

Ela já estava ciente que seria jogo duro ─ Tchurum retornaria lá de baixo pouco disposto a amaciar os preços, ainda mais quando visse o Visa na mão dela, ao invés do costumeiro dinheiro vivo. Ela teria de negociar. Então desabotoou alguns botões. Tinha bastante espelhos na loja, de modo que checou rapidamente o visual. Não gostou muito do que viu, pois sabia que poderia alcançar níveis mais altos com o sutiã certo, que por sinal não era aquele que ela usava. Mas deveria bastar. Olhou de novo para o espelho, ensaiando um sorriso. Também não gostou. Ela esquecera totalmente de tomar algum tipo de Sorriso hoje cedo.

Lá de baixo ele disse:

─ Você está meio nervosa. ─ E retornou com uma caixa. Azul. Abriu e tirou de lá algumas cartelas com pílulas. ─ Eu tenho aqui Alegria Espontânea. Tá numa promoção muito bacana. Comprando um Alegria Espontânea, você leva meia cartela de Sorriso Jovem, mais meia cartela de Gargalhadas Carismáticas e mais três cartelas de Obrigado-Porfavor!

Três?

─ Três. Acho que deu encalhe. As pessoas não compram mais, nem mesmo as fórmulas legais... Aí tem que fazer promoção. E é uma boa promoção, que ta ─ 

Não! Não muda de assunto, Tchurum. É o Controle de Rosto que eu quero. ─ ela mexeu os ombros, tentando encolher aqui e ressaltar ali. ─ Você está me magoando. Nunca mais compro aqui.

Tchurum olhou mas desviou. O palito saltou de um lado para o outro nos lábios seco dele.

─ Que tal um espelho?

─ Eu tenho espelho em toda casa! Não está vendo que sou uma mulher?

─ Não precisa ser grossa.

─ Desculpa. ─ E o mesmo movimento. Qual o problema dele?

Depois de ronronar e olhar e desviar de novo, ele esclareceu.

─ Sou muito bem casado, dona.

Dona? Ela quis rasgar a cara dele com as unhas que fez ontem, na Szuleika, com S mudo. Mas bateu no tampo do balcão ao invés disso.

Eu preciso disso! ─ Saiu como um choramingo. Estava perdendo as forças pra lutar.

Tchurum enfim amoleceu, se abaixando atrás do balcão com uma cara de quem sabe que irá se arrepender. Voltou com a caixa vermelha.

─ Tem um cliente que encomendou tudo isso e já pagou. Um advogado de defesa, sabe. Agora vou ter de explicar para ele sobre a falta de uma cartela, além de devolver o valor da unidade ausente. Isso vai me queimar com ele e talvez ele não compre mais nada comigo, entende? Então vou cobrar caro, pra compensar o risco com meu outro cliente.

─ Quanto?

─ O triplo.

─ Não seja ridículo! ─ As forças voltaram.

─ Não seja grossa! 

─ Daqui alguns meses essas drogas serão comercializadas abertamente nas farmácias!

─ Então fique à vontade para esperar esses “alguns meses”. ─ E, na maldade: ─ dona Djoana!

Agora ela estava precisando de um Controle Total, se é que existia algo assim. Ela nunca dera um soco na vida e se saiu muito bem para uma iniciante. Assim ela preservou as unhas feitas na Szuleika quando, com o nó dos dedos, quebrou o nariz do Tchurum, que caiu pra trás sobre outras caixas num giro assustado de braços, pernas e palito.

O que ela não percebeu foi que mais pessoas passavam pela rua quando os dois estavam gritando um com o outro. Algumas dessas pessoas tinham visto a cena. E algumas dessas pessoas tinham carteira de civiltar ─ civil militar: uma licença que permitia ao cidadão de bem exercer a lei no dia a dia, caso necessário. 

Então quando ela pegou uma cartela de Controle de Rosto, enfim tão perto, não conseguiu tomar pois se sentiu pesada e imobilizada por causa de dois civiltares jovens frequentadores de academia. Ela não tomou, não conseguiu se livrar do aperto e ainda por cima desacatou autoridade com algumas grosserias. 

Obviamente perderia a reunião. Nesse ponto ela já estava conformada. Foi levada para o Quartel General mais próximo, onde deu depoimento e teve um retrato tirado. 

Tchurum também apareceu, segurando o nariz no lugar, e acusações foram feitas. Testemunhas apareceram. Ela seria julgada por agressão no mesmo dia.

Chamaram um advogado do estado para representá-la no julgamento. Se encontraram numa salinha, ainda no QG. O homem sentou do outro lado da mesinha de ferro, exatamente como nos seriados de TV com temáticas de investigação. Até desabotoou alguns botões do paletó ao se sentar. Ela lembrou dos dela, os quais rapidamente abotoou, meio sem jeito. 

E se você leu até aqui, bem, agradeço muito. E me desculpo, pois essa é uma estória que não tem um final (apesar que essa aqui ainda estava longe do final; prevejo um tribunal, alguns jurados e a sentença [as coisas jurídicas acontecem bem depressa nesse mundo, hm], e por fim alguém dizendo que ela não precisa controlar o rosto, pois as expressões são o que a deixam tão autêntica... talvez o advogado [Jigor, com J mudo] dissesse isso, que por sinal seria o mesmo que ia comprar todo o Controle de Rosto do Tchu, não sei) e vou ficar devendo o desfecho, perdão. 

Observação importante: roubei o termo e a ideia "civiltar" do livro Não Verás País Nenhum, do Ignácio de Loyola Brandão. 

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