quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Poe, sobre obstinação

Este é um espírito de que a filosofia não se ocupa. Contudo, a certeza de que a alma vive não é menor do que a certeza de que a obstinação é um dos impulsos primitivos inerentes ao coração humano ─ uma das faculdades, ou propensões, primárias e indivisíveis, que norteiam o caráter do Homem. Quem já não se flagrou, dezenas de vezes, a perpetrar um ato vil ou tolo sem motivação alguma ─ apenas porque não deveria? Não temos, pois, uma inclinação perpétua, em que pese ao nosso melhor juízo, a infringir o que é Lei apenas por entendê-la como tal?
─ trecho do conto O gato preto, de Edgar Allan Poe


Estamos diante de uma tarefa que cumpre terminar depressa. Sabemos que a demora significa a ruína. A crise mais importante de nossa vida nos chama, com um toque de clarim, à ação energética e imediata. Estamos radiantes, consumidos pela vontade de atirarmo-nos à tarefa, antecipando o glorioso resultado que nos põe a alma em chamas. Devemos, precisamos começá-la hoje, e, no entanto, a deixamos para amanhã ─ por quê? Não há resposta, salvo que nos sentimos obstinados, usando a palavra sem compreender seu princípio. O amanhã chega, e com ele uma ânsia ainda mais exasperada por desempenhar nossa tarefa; mas, junto com essa ânsia, surge também um desejo inominado, deveras temível ─ porque incompreensível ─ de postergar. O desejo ganha forças à medida que o tempo passa. Chega o último momento em que podemos agir. Estremecemos com a violência do conflito interno ─ do definido contra o indefinido ─ da substância contra sombra. Mas, se o embate chega a esse ponto, a sombra prevalece - lutar é inútil. É quando os sinos dobram por nosso bem-estar. Ao mesmo tempo, é o cantar do galo para o espectro que há tanto nos oprime. O fantasma esvoaça ─ desaparece ─ estamos livres. Recobramos a força de outrora. Já podemos trabalhar. Mas ─ aí de nós ─ é tarde demais!   

Debruçamo-nos sobre a borda de um precipício. Fitamos o abismo ─ sentimos náuseas e vertigem. O primeiro impulso é afastar-se do perigo. Mas, sem saber por quê, permanecemos lá. Aos poucos, náuseas e vertigem fundem-se em uma nuvem de sentimentos inomináveis. Lentamente, de modo ainda menos perceptível, a nuvem assume uma forma, tal como a fumaça de onde o gênio emergia nas Mil e uma noites. Mas de nossa nuvem, à borda do precipício, surge algo palpável, uma forma, muito mais temível que os gênios ou demônios das fábulas, que, contudo, nada mais é do que um pensamento, ainda que seja um pensamento que instila pavor e nos enregela os ossos com a força deleitosa de seu horror. É a mera ideia do que sentiríamos ao nos precipitar daquela altura. E esta queda ─ esta aniquilação veloz ─, justamente por envolver aquela que é a imagem mais horrenda e deplorável de todas as imagens horrendas e deploráveis da morte e do sofrimento que jamais se apresentaram às nossas consciências ─ justamente por esse motivo nós agora a desejamos com avidez. E, uma vez que o juízo luta para nos afastar da beirada, empenhamos todo nosso ímpeto em aproximarmo-nos do vazio. Não há, em toda a natureza, arrebatamento mais impaciente que o de alguém que, tremendo à beira do precipício, medita sobre a Queda. Entregar-se, por um momento que seja, ao pensamento é estar perdido para sempre; pois a reflexão tenta nos dissuadir, e não é outro o motivo que nos incita. Se não houver um braço amigo para deter-nos, ou se não lograrmos afastar-nos do abismo, o impulso e a queda terminam por nos destruir. 
─ trecho do conto O demônio da obstinação, de Edgar Allan Poe

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