sábado, 23 de novembro de 2013

Sonata do bardo 4

16º dia do 7º mês, Luvitas. Ano 1400.

Sabe quando tudo parece lento demais, até mesmo você? Por um momento é como se você estivesse fora do próprio corpo, assistindo de longe, vendo que aquele cara logo ali ─ que é você ─ não se move tão rápido quanto deveria. Sabe como é? 

É claro que não sabe, né? 

Pois eu digo: é estranho. 

Magia é um troço estranho. 

E aquele cara usou magia. Desgraçado.

Ele gritou:

─ Gente de Luvian! ─ E todos pararam, ouvindo. Pararam de dançar e rir. Os que comiam engoliram em seco sem fazer barulho. Crianças olharam para seus pais em interrogação muda e eles devolveram uma expressão de "fiquem quietos". Quando ele sentiu que tinha a atenção de todos, bradou: ─ O príncipe Hug, primogênito de nosso regente, foi morto dias atrás. Ele e alguns amigos. Assassinados, na verdade. Há três dias à sul daqui. E esse homem ─ apontou pra mim ─ é culpado, de modo que tenho aqui o mandato de prisão dele e sua trupe.

Eu poderia questioná-lo, certo? Eu e meus camaradas estávamos na cidade fazendo a festa deles. Éramos apenas músicos. Que prova ele teria além da própria palavra? Mas de algum modo eu me senti culpado, suor escorrendo pelas minhas costas, a boca secando. Fiquei mudo, as coisas se movendo devagar. Magia, desgraçado maldito, estava usando magia.

Ou talvez tenha sido só impressão minha, não era magia e na verdade aquele cara tinha um vozeirão de arauto. Talvez algo que comi não em fez bem, me deixando meio pesado. Fosse o que fosse, não importava muito agora.

O meu contratante, dono de Luvian, se aproximou com cuidado, esfregando as mãos gordas. Pediu cuidadosamente para ver o mandato. O mensageiro o mostrou e tornou a falar:

─ Eu estava junto. Sobrevivi ao ataque. Sou testemunha viva.

─ Senhor, não nos entenda mal ─ apressou-se o meu anfitrião, ou já devo considerá-lo inimigo? ─ eu os abriguei aqui para animar nossa festa. Não quis esconder nenhum tipo de criminoso.

─ É mentira ─ consegui dizer, nem com a metade da convição que eu deveria ter pra fazer minha defesa. Pelo canto do olho pude ver uma movimentação. Deveria ser homens de armas, os poucos guardas do local. Me pegariam primeiro e depois se importariam em saber o que eu teria a dizer.

Por isso, corri.

Alguém tentou segurar meu ombro, nem vi quem. Joguei o cotovelo para trás e senti o estalo de um nariz quebrando. Curioso, esse povo de Luvian. Não são como os demais em outras cidades dos interiores dos reinos. Em outros cantos do mundo, ninguém liga para os assuntos das autoridades. Que eles limpem a merda deles, pensam. Aqui, tentaram me barrar imediatamente. Saí do caminho de um grandalhão e derrubei uma cadeira para obstruir a passagem de outros dois. Todos eles estavam curtindo minha música instantes atrás, mas agora esticavam as mãos para mim. Qual o problema dessa gente?

Pelos fundos. Meus camaradas raciocinaram rápido e fomos todos para o mesmo destino, trombando com quem estivesse no caminho. 

─ Meu alaúde ─ eu disse, mas suspirei de alegria ao ver que Grilo, correndo na minha frente, o havia pego. Mas ele o segurava de forma pouco delicada e aquilo me doeu o coração.

É estranho como a cabeça funciona numa situação dessas. Já matei gente, sou um belo arqueiro e coisa e tal. Passei por situações difíceis e sei muito bem quando é a hora de fugir. É o que estou fazendo, correndo por minha vida. E, no entanto, estou preocupado com o raio do meu alaúde, Grilo segurando ele daquele jeito tão bruto.

Alguém gritou "peguem ele" e eu acordei do meu transe, acelerando a corrida. Passei por uma servente que trazia uma panela cheia de algo fervente, tirei de suas mãos e atirei para trás, ouvindo o grito de um perseguidor ao receber ensopado quente bem nas sobrancelhas. 

O primeiro da fila era Rark, que arrombou uma porta para darmos numa rua qualquer aos fundos do salão. Corremos por uma direção mas homens em cota de malha estavam logo ali, o que nos fez recuar para o caminho contrário. O desgraçado, o frio e calculista, trouxe companhia. Todos armados e a cavalo. Eles entraram na via num espírito de caça assim que nos avistaram, as armas abaixadas para espetar. Senti aquele formigamento nas costas, muito ciente de que levaria um golpe por trás a qualquer instante. Rolei para o lado num acesso de adrenalina. Iria enfrentar os desgraçados. O que não era boa ideia; eu, desarmado, eles, bem servidos.

Dois cavaleiros passaram batido por mim enquanto eu me erguia numa cambalhota desajeitada. No chão, encontrei um pedaço de madeira. Peguei, feliz em ter algo na mão. Olhei adiante e vi mais três soldados cavalgando na minha direção. A rua era estreita, de modo que no galope somente um deles teria ângulo para atacar. E antes que sua espada se abaixasse contra o meu crânio, eu golpeei as patas da montaria, que relinchou e perdeu o equilíbrio. O cavaleiro voou, e aquele não era um voo mágico, disso eu entendo.

Agora, veja bem, eu estava cercado. Um dos cavaleiros virou nas rédeas, voltando-se para mim, enquanto seus amigos seguiam pela rua na direção dos demais músicos assassinos ─ a tal da minha trupe. Do outro lado, alguns homens que estavam nas comemorações terminavam de sair pelas portas do fundo. Não tinha nada pra mim ali, a não ser pontapés nas costelas quando me derrubassem, isso se aquela espada do cavaleiro não furasse meu bucho antes. Olhei para os lados. E, abençoadamente, Nimb apareceu dando a saída dos problemas? Não, não foi Nimb. Eu vi uma escada, original de algum aposento superior do salão de festas. Me atirei nela, subindo como se uma Área da Tormenta estivesse logo atrás, se aproximando perigosamente dos meus fundilhos. Alguma coisa bateu na parede do meu lado, atirada por alguém. Senti que já não estava sozinho na subida, olhei para baixo e chutei um rosto barbudo. Mais um pisão e o homem amoleceu, caindo nos outros. 

Gritei quando cheguei no fim da escada, subindo numa sacada. Corri para um lance de escada dentro daquele aposento estranho e saí no telhado. Me permiti um instante e vi ao longe o cabelo vermelho de Larien. Corri pelo telhado, ouvindo coisas óbvias como "ele está no telhado! Lá em cima!". Caipiras. 

Não sou tão ágil como gostaria e saltar de um telhado para outro me custou um mal jeito no tornozelo esquerdo. Continuei mesmo assim, arfando ruidosamente feito um velho cansado com muito catarro no peito. O cabelo de Larien sumiu, entrando num jardim próximo. Fui naquela direção, percebendo que alguns perseguidores subiram nas telhas. Escorreguei por um tipo de calha, arrebentando ela no meio do caminho e caindo no chão de costas, uma altura generosa. Tudo ficou branco por um instante, não havia som no mundo. Só havia o meu nome ecoando no ar, o que era estranho. 

─ Torinks! ─ O meu nome, havia o meu nome ─ Torinks, levanta logo! Por aqui!

Era Grilo (ou Rark?), chamando de algum lugar. Me arrastei, subitamente sentindo com mais intensidade a dor no tornozelo meio torcido. 

─ Eles não trouxeram cães ─ falei entre dentes, nem sei por que. É estranho como a cabeça funciona numa situação dessas.

Levantei e corri como pude. Entrei no jardim, onde tinha visto o rastro de Larien pela última vez. Era uma área extensa, deveria terminar fora da cidade. Não deveria ser um simples jardim, grande daquele jeito. Não importava. Tentei ir mais rápido, a Tormenta mordendo meu cangote. ■


Hoje. 9º dia de 1º mês, Altossol. Ano 1401.  

Minha cabeça ainda está aqui, sobre os ombros. Era para eu ser executado hoje cedo, mas algo aconteceu.

Chegaram a me levar para fora das masmorras. Até fiquei ansioso por ver o céu, o sol. Mas colocaram um saco poeirento na minha cabeça e me empurraram pra fora, aos tropeções e espirrões. Ouvi de longe algum tipo de discussão, tudo abafado pelos meus sufocamentos. Nunca pensei que um saco na cabeça fosse tão irritante. Me fazia querer dizer para eles terminarem logo com aquilo, seja na corda da forca ou no machado do executor. Mas então: tinha uma discussão e acho que por causa dela houve movimento de soldados. Ouvi gritos de ordem, cavalos foram trazidos.

─ Vão me partir ao meio com os cavalos, é isso? ─ Perguntei, às cegas. Era um método mais lerdo que o machado e mais doloroso que a forca. Fiquei ligeiramente preocupado: ─ Tem certeza que vão querer perfumar o pátio com minhas tripas?

E me bateram na cabeça, pra que eu me calasse. Desconfiou que foi o Morphis.

Deu que os cavalos não eram pra mim. Soldados ali perto montaram e cavalgaram pra longe, pude ver através de um buraquinho no saco. Um deles se aproximou e disse que houve problemas com "estrangeiros", dando ênfase na palavra. Problemas num porto ali perto.

Eu sei que o reino de Fortuna é estreito e as coisas ficam perto uma das outras, mas fiquei surpreso em ter um porto próximo da capital. Quer dizer, nem sei se estou na capital. Fui capturado e desmaiei de tanta porrada, de modo que quando acordei já estava na minha cela. Fosse onde fosse, naquele instante, logo desisti de lembrar a geografia do reino. Fiquei mais interessado nos resmungos ao meu lado.

─ Podemos executá-lo e depois ir pra lá, não? ─ Era Morphis, falando de mim.

─ Não, seu porco cagalhão ─ Foi a resposta que ouvi do soldado. Dei risada. Morphis não era muito amado. Levei outro golpe na cabeça e caiu pesado no chão, o que me fez perder o humor. O soldado se moveu no cavalo ─ Levem ele de volta, te aprontem.

E foi assim que voltei para cá, para minha cela, meus papéis e minha tinta. De modo que continuo escrevendo.

Suspenderam minha execução. E nem pude perceber para onde me levavam e se teria publico para ver. Uma plateia no final seria nostálgico, sabe, como nos tempos que eu era músico.   

Mas algo me dizia que o final demoraria um pouco. Esse algo poderia ser o sussurro de Nimb. Aquele calhorda trabalha de formas estranhas. Você sente que ele está ao teu lado quando quase toda a guarda da cidade se retira num evento e quando você leva uma porrada e cai no chão, vira de costas e, com as mãos amarradas, apalpa sem querer algo como um grampo de cobre numa imperfeição do chão do pátio.

─ Acho que vou sentir saudades daqui ─ sussurrei num sorriso bem humorado, quando percebi que também já não havia carcereiros por perto. Na verdade, acho que só havia Morphis nessa função e o porco cagalhão estava longe.

Ora, sendo assim, peguei o grampo de cobre e fui ter uma conversa com a fechadura da minha cela. ■

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