segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Não Verás País Nenhum


Há quase meio século, um cardeal belga, Suenens, dizia que a diferença entre uma pessoa de 20 anos e outra de 40 não era mais de 20 anos, era de dois séculos ─ o que antes levava um século para acontecer já se tornava realidade em uma década; o que levava uma década, concretizava-se em um ano. Os quatro séculos passados desde então lhe deram razão: que resta hoje dos sonhos de transformação ─ social e política ─ da década de 1960?

Só alguns olhares privilegiados consequem antever, em meio à barafunda e à balburdia dos tempos velozes, para onde de fato caminhamos ─ ou podemos caminhar, se não tivermos juízo. Este livro, publicado pela primeira vez em 1981, é um dos raros exemplos. 

Os cientistas do clima esboçavam nesse início da década de 1980 suas primeiras preocupações com o que poderia vir a acontecer se continuássemos entupindo a atmosfera com gases poluentes ─ quase ninguém lhes dava atenção. Mas este livro já antecipava o que seria o país com as "secas definitivas" que "vieram logo depois do grande desastre amazônico", simultaneamente às cidades afogadas pelas ondas do mar. Antecipava o drama da escassez de água, que só se tornaria tema universal uma década depois, na Eco 92. As cidades sitiadas, com "congestionamento de 500 km" (já estamos perto), um "centro esquecido", bairros "dos que se locupletaram". Cidadão passivos "diante da maior questão política". 

Mais impressionante ainda, já apontava Ignácio de Loyola Brandão o que nos levaria a aceitar a tragédia "como um novo cotidiano": "Fizeram tudo para massificar, ao mesmo tempo que isolaram cada pessoa em si, tornando-a ferozmente individualista, fechada ara o outro [...], medrosa da própria personalidade". Pode-se ter retrato mais fiel da "modernidade"?

"Faço um livro sobre o que poderá vir a ser", escreveu o autor em seu diário do tempo em que produzia este livro. Já enxergando que "agora, em volta da cidade, só tem pasto e cana". 

É preciso prestar atenção ao que foi escrito em 1981 e ainda parece distante de acontecer. 

Washington Novaes

Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão, já li um ou outro conto dele e geralmente não deixo passar suas crônicas de sexta-feira no Caderno 2 do jornal Estado de S. Paulo. Mas ainda não tinha me aventurado por um livro de sua autoria. Depois de ouvir o próprio autor comentando, em palestra, a estória de um homem com um furo na mão num futuro meio apocalíptico que escreveu na década de 1980 e publicou sob o nome de Não Verás País Nenhum, decidi que era a hora de prestigiar o autor começando por este livro.

Em um futuro de reações climáticas desequilibradas, temos Souza. Um sujeito qualquer, ex-professor universitário de História, casado, sem filhos, vivendo os dias de forma arrastada graças à uma rotina matadora: a terrível repetição casa-trabalho-cama, e no dia seguinte a mesma coisa e no dia depois deste, até o fim dos tempos que jamais chega.

São Paulo, Brasil. Mas muito da cidade está transformada, adaptada. Lixões, esgotos, centros de moradia. Há também uma espécie de "pedágio" que separa os bairros, então os paulistanos perderam o livre direito de ir e vir. É porque há muitos doentes; doenças inexplicáveis, sem cura alguma. Doenças causadas pelos raios solares, por causa da falta de água potável. Daí a necessidade de isolar algumas pessoas, deixando pontos da cidade fora de alcance, patrulhada pelos Civiltares ─ uma espécie de força militar que impõem toque de recolher, atira e depois pergunta, mandam e você obedece. Estes, os Civiltares, são instituídos pelo novo governo chamado Esquema, algo que Souza critica de inicio ao fim.

Pois Souza tem a mente ativa, um bom censo critico que lhe mantém aceso em meio a rotina robótica. A narração em primeira pessoa nos apresenta seus pensamentos e lutas internas ao mesmo tempo em que ele interage com a esposa, o sobrinho, o velho amigo, as pessoas caladas no ônibus que pega todo dia.

Calor. O sol é o flagelo de Deus nessa Terra do futuro. Começou mais ou menos quando perderam a prudência com a Amazônia. Contratos, serviços, planos científicos; e a floresta, de repente, se tornou um quintal internacional. Deu merda. O ecossistema foi pro ralo. Tanto que no nordeste do Brasil há "bolsões solares", o que seria momentos do dia em que o sol queima feito o diabo, e se você passar perto de uma área que tenha essa exposição solar, bem, você se contorce por um tempo, leva a mão até a cabeça, põem a língua pra fora e morre ali mesmo, virando cinzas depois de algum tempo.

O sol secou muita coisa. Quase não tem água no país e, com isso, há poucos alimentos como antigamente. Digo, você não vai mais encontrar frutas por ai. Frango, peixe e outros animais, só em sonho. O jeito é se contentar com os alimentos falsos: aquela "coisa" que vem num saco plástico e tem o mesmo gosto de uma fruta, o mesmo aroma de um café. Até a água pode não ser água: Souza suspeita que é urina reciclável. Mesmo assim, toma quando tem cede. Ora, fazer o que?

Fazer o que? Bela questão. A resposta é: nada. Tanto que as pessoas se acomodaram. Vivem normalmente em condições absurdas. Todo dia é um calor vulcânico, e lá está a galera indo para o trabalho, suando, a roupa colada no corpo, em sopa. E é tarde demais para tentar qualquer coisa: os Civiltares estão por todos os lados de modo que uma manifestação é o mesmo que não prezar pela própria vida. Eles atiram primeiro, lembra? Prezam pela ordem e segurança.

Há corrupção, há beneficio para poucos enquanto muitos sofrem. Há a esperança de que vão resolver os problemas, que vão arrumar o planeta. Assuntos super atuais.

E há Souza, que ganha um buraco na mão. Isso mesmo, um buraco, redondo, no centro da palma, que faz até sombra no chão. Há seus embates com o sobrinho, seus devaneios políticos, sua opinião sobre a sociedade conformista (em que se auto censura, afinal, faz parte dessa sociedade), seu passado (ele lembra, por exemplo, quando ainda existiam árvores por aí) e, principalmente, seu decadente casamento que é como chama de lareira apagada com um jato de água fria.

Teria de tudo para ser um livro denso e depressivo, mas é escrito por Ignácio de Loyola Brandão, o que significa que o leitor irá gargalhar em muitos instantes de humor, com os diálogos e situações irônicas que acontecem com Souza. A narração ajuda um bocado, com suas gírias da época (como o "você tá pancada?" e "deu crepe").

Não Verás País Nenhum envolve com a tensa trajetória presente de Souza e o seu passado aos poucos revelado. Apresenta críticas à sociedade e ao trato com o meio ambiente de forma rápida, com humor, com acidez. E sua principal característica é (como dito no relato do jornalista Washington Novaes) sua atualidade ─ sua capacidade de trabalhar temas que fazem pleno sentido hoje, mais de 30 anos depois de ser escrito.

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