sexta-feira, 14 de junho de 2013

Os três estigmas de Palmer Eldritch

Num futuro não tão distante, quando o exílio compulsório de um planeta Terra excessivamente quente significa instalar-se miseravelmente em colônias marcianas, a única coisa que faz a vida dos colonizadores suportável são as drogas. Única em sua finalidade, a Can-D "traduz" aqueles que a consomem para uma outra realidade.

No entanto, o surgimento de um concorrente abre uma disputa por esse mercado. Chamada Chew-Z, a nova substância é comercializada sob o slogan "Deus promete a vida eterna; nós cumprimos a promessa". Mas a questão é: Que tipo de eternidade ela oferece? E quem - ou o que - será seu portador?

Como é mesmo aquela história do Jardim do Éden? Pera, lembrei: A Serpente cega o entendimento de Eva, que, ludibriada, come do fruto do bem e do mal. A fruta era atraente aos olhos e trazia a promessa de grande conhecimento a quem dela comesse; um conhecimento, quem sabe, à nível do Senhor. Daí a mulher comeu e o homem idem. E a Serpente riu, pois conseguira ─ fez o homem romper com Deus ao violar a regra de não comer daquele fruto; e romper com Deus, em outras líguas, é pecar; e estar em pecado, logo, separado de Deus, é o motivo da Serpente rir, pois conseguira expor que a criação, enfim, era falha. Consequência: o homem exilado do Éden.

É que neste livro Philip K. Dick trabalha alguns aspectos que lembram essa mitologia do Jardim.

OS TRÊS ESTIGMAS mostra um futuro em que parte do espaço foi colonizado e o homem já sabe da existência de outros sistemas estelares e diferentes formas de vida espalhadas espaço a fora. Visionário, Dick ainda coloca um planeta Terra sofrendo com altas temperaturas e fortes raios solares, onde sair na rua sem a devida proteção é o mesmo que pedir para morrer cremado. Os polos do planeta ─ lugar em que ainda faz frio ─ são pontos turísticos e econômicos onde só quem tem bala na agulha consegue visitar, alugar uma pousada e passar as férias enquanto os pobres mortais proletários, que são maioria, se conformam com ar condicionado em suas empresas e casas.

Há também um tipo de serviço militar que seleciona pessoas para serem colonizadoras em planetas desbravados. E dizem que ser um colonizador é tão ruim a ponto deles se entregarem a tal droga Can-D, que te deixa num tipo de coma enquanto leva sua mente para um ambiente virtual que é absurdamente real. Lá você pode construir uma vida normal, ter acesso a todo tipo de sensação e emoção, ser outra pessoa. Por dias a fio ─ pois o tempo na “realidade da droga” não corre como o tempo no mundo real.

“Tá, legal, mas onde entra o Éden nisso?”, você me pergunta. Calma que eu respondo: Tem um cara, um tal de Palmer Eldritch, que acaba de voltar para o sistema solar, depois de uma longa viagem sabe se lá pra onde. E ele volta com uma proposta de mercado: uma nova droga, a Chew-Z. Essa nova droga tem um funcionamento muito mais aprimorado que a Can-D; pois ela não se limita a criar outra realidade, ela faz mais que isso ─ ela recria momentos do passado do usuário, ou salta para o futuro do mesmo. Logo, a droga tem uma aparência atraente (quem não gostaria de reviver momentos do passado?) e sua promessa de conhecimento é inquestionável (quem não gostaria de saber o próprio futuro? Ao menos uma espiada, certo?), tal como a maçã.

Mas o entorpecente tem um ônus: além da dependência que causa, a Chew-Z introduz algo na mente do usuário, algo aparentemente permanente, talvez retirado somente com um processo intenso de purificação e se o usuário não tiver abusado muito da droga em intervalos curtos. Esse “algo” que começa a fazer parte do usuário é... Palmer Eldritch, a Serpente dessa estória.

A coisa é confusa, bem confusa. A única forma de explicar é fazendo uma alusão ao agente Smith, do filme Matrix. No filme, os humanos estão dormindo em casulos enquanto sonham com a Matrix ─ o pseudo-mundo posto diante de seus olhos. Tudo é criado pelas máquinas, inclusive o seu programa de defesa, o Smith. E quando ocorre alguma falha no sistema o programa de defesa pode assumir uma pessoa a fim de resolver as tretas. Conclusão da prosa: os humanos presos na Matrix ainda são humanos, mas, como se estivessem infectados, eles também são agentes em potencial. Ou seja, Smith é quase onipresente; está em todos e pode ser todos.

Neste livro, aquele que experimenta a Chew-Z dá brechas, de alguma forma, para que Eldritch entre em sua mente e influencie sua percepção de mundo. A um momento que um personagem não sabe dizer se ainda está sobre influencia da droga (e tudo o que vê é criações de seu próprio subconsciente e de Eldritch) ou se de fato está sóbrio e no mundo real. E desse modo, um usuário dependente pode passar uma vida inteira sobre a influência de Eldritch, pois o tempo da droga é diferente, e isso pode, de certo modo, significar a vida eterna, onde você vive uma vida inteira em pouco tempo no mundo real. Tenso.

E o pior é que Eldritch meio que se alimenta das mentes das pessoas. Ele vai se tornando onipresente, como o Smith. Tem até a brincadeira “acharam Deus, e o seu nome é Palmer Eldritch”. Mas algumas verdades por trás dele e seus objetivos e tudo o mais são coisas que se revelam só nas últimas dezenas de páginas.

Novamente, Dick trabalha com personagens bem comuns: o dono da Can-D, um funcionário seu, a ex-esposa desse funcionário e mais uns dois ou três coadjuvantes. Mas assim como o cenário, os personagens também são meros instrumentos desbotados que dão passagem para o mais importante nos livros desse autor: as suas filosofias sobre a vida.

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