domingo, 7 de abril de 2013

O Cavaleiro da Morte

O CAVALEIRO DA MORTE é o segundo volume de Crônicas Saxônicas, série que apresenta a história do lendário Alfredo, o Grande, e de seus descendentes. Bernard Cornwell tece um belíssimo relato de lealdade dividida, amor relutante e heroísmo desesperado.

Na batalha, são todos iguais ─ seja um saxão cristão ou um dinamarquês pagão; não importa a etnia, o nível social ou a moralidade. Na batalha são todos homens em fúria. Orgulho e reputação são os valores de um guerreiro do século 8. Diante de uma horda inimiga, antes que tudo comece, ele, o guerreiro, pode até se lembrar da família, de sua posição no reino, se preocupar com o aliado do seu lado direito que deve lhe proteger com o escudo, se preocupar com o aliado à esquerda o qual deve proteger com o escudo, se preocupar com o comandante ou rei ali perto, fazer uma oração ou promessa ao seu deus, ohar para o céu em busca de um pássaro agourento, imaginar como deve ser o pós-vida caso venha morrer daqui uns minutos, imaginar que não deve morrer pois ainda tem coisas a resolver nessa vida, ficar com ódio só por pensar nisso e então xingar o inimigo mais a frente, xingar eles de cagalhões ou excrementos de cabra. E então rugir quando o choque entre as paredes de escudo está próximo. Sentir um músculo da perna ou do pescoço ou do braço tremendo de tensão, apertar com força o cabo da espada curta, deixar o pé direito recuado para se manter firme no momento do impacto, rugir uma vez mais e de novo, ante a hora da matança.

E então todos esses pensamentos se evaporam, pois não importa quem é o guerreiro, e ele não se importa com mais nada a não ser o inimigo à sua frente. No comportamento do homem resta somente a loucura; é como uma fera solta, totalmente insana por estar a tanto tempo contida por padrões morais e crenças e preocupações. A fera agora está livre e pronta para fazer o que sabe fazer por natureza: tragar vidas. E suas ferramentas são as mais simplórias: a espada e a força do braço que a empunha.

Quando tudo termina e o guerreiro está com o rosto empapado de suor e a espada melada com o sangue inimigo, a fera vai embora. Mas ela deixa dois apetites para o homem, e o homem, independente do que é, abraça esses apetites bestiais como se fosse um legado de família. São duas coisas importantes para um guerreiro do século 8.

Orgulho e reputação.

Estar numa paredes de escudo alimenta o orgulho do homem, que, mais tarde, pode dizer que esteve lá, viu tudo, lutou e venceu. Romper uma parede de escudos, derrubar um comandante inimigo, banhar sua espada com o sangue de muitos oponentes; tudo isso alimenta a reputação do homem, que será respeitado eternamente entre as testemunhas de sua época e com sorte o seu nome não será vencido pelo tempo.

Isso era a época medieval. E ler Bernard Cornwell é entender tudo isso. É sentir tudo isso. E O CAVALEIRO DA MORTE segue firme como guia básico da época medieval, como livro histórico e como entretenimento.

Continuamos com a ascensão dos dinamarqueses no território saxão, em que Wessex, o último reino, ainda sobrevive, mas os demais reinos que formam a Inglaterra do século 8 ─ Ânglia Orienal, Nortúmbria e Mércia ─ estão sob julgo dos invasores. Neste livro, Uhtred é cercado a todo tempo de escolhas difíceis. Após a batalha que fecha o primeiro livro da série, ele deveria ir até o rei e dar a noticia da vitória ─ vitória em que ele fora o principal protagonista; mas o que fez foi correr até sua mulher, temendo que ela fosse raptada por um rival. Então um outro alguém foi dar a noticia da vitória, e foi este que ganhou as honras do rei ao passo que Uhtred permaneceu no anonimato. Mais pra frente ele teve a chance de mudar de lado, passar para os dinamarqueses (povo com quem cresceu e tem fortes laços de amizade), mas se fizesse isso um ente muito querido em posse dos saxões seria morto, em represália por causa da vira-casaca. E por ai vai. Uhtred, um jovem arrogante e orgulhoso, construindo uma reputação, dividido entre dois povos em guerra, sempre entre escolhas duras. Entre elas, servir um rei que odeia.

Uhtred é, por direito, senhor de um pedaço de terra do norte da Inglaterra. O lugar é regido pelo seu tio, e este, tendo a chance, mataria Uhtred para eliminar qualquer concorrência. Então, raciocinando, Uhtred espera juntar riqueza, comprar homens para sua causa e enfim retornar a sua terra e estripar o usurpador safado ─ seu tio. E para isso, ele precisa servir alguém que lhe dê homens e riqueza, no caso ou Ragnar, seu amigo dinamarquês, ou Alfredo, seu rei saxão. Escolheria Ragnar sem pestanejar; pois Ragnar é como um irmão para Uhtred ao passo que Alfredo é uma pedra dentro da bota. Mas o problema é que Uhtred fez inimigos em meio os dinamarqueses; ele teria, sim, o auxilio de Ragnar, mas outros líderes dinamarqueses lhe dariam uma morte lenta se tivessem a chance, de modo que não estaria seguro, mesmo entre o povo em que passou a infância e descobriu a arte da guerra. Então, só restava um caminho a trilhar.

Alfredo.

Alfredo, o Grande, é um rei inteligente. Sabe, precisamente, como dobrar o povo, como conseguir favores. É um devoto fervoroso, e isso lhe dá o importante apoio da Igreja. Por um momento pode-se pensar que Alfredo é um cristão de mentira, mas não, o cara tem mais fé que toda sua comunidade de padres. E, apesar de julgar muito bem as coisas, vez ou outra sua fé atrapalha decisões importantes. Creu, por exemplo, que um inimigo em sua fronteira havia se convertido e agora estavam em paz. Graças a Deus, estavam em paz. Então, quando Wessex dormia, o dinamarquês convertido que havia até se batizado fez o que sabe fazer por natureza: pilhou, matou, pilhou mais e matou mais. Ataque surpresa. E o último reino quase caiu, faltou pouco para os dinamarqueses exterminarem de vez a Wessex de Alfredo. A pancada foi dura, mas o Grande aprendeu a lição. Seus padres insistiam que Deus ia ganhar aquela guerra por eles, mas Alfredo queria ter certeza, não que duvidasse de Deus, mas queria ter alguma garantia que pudesse tocar. Fez alianças, se recuperou, armou ataques estratégicos e no fim restaurou seu reino.

Alfredo deveria ser muito grato à Uhtred, pois Uhtred prestou, ainda que relutante, um enorme serviço ao reino saxão. Sugeriu estratégias e liderou homens, derrubou inimigos importantes e protegeu o rei quando este poderia ser morto. Talvez, se não fosse Uhtred, Wessex teria caído por completo e Alfredo teria o corpo esquartejado e os cachorros dos dinamarqueses ganhariam um banquete real. Mas Uhtred não é cristão. Então Alfredo não consegue ser completamente grato à um pagão como Uhtred. Para mascarar a coisa toda, ele gosta de pensar que Deus usou Uhtred e todos ganharam a guerra. Os padres dizem que os anjos do Senhor desceram na terra e ajudaram os saxões de Alfredo e este é o ungido de Deus que não poderia perder. Claro, essas coisas são declaradas somente depois que a guerra está ganha. Antes, todos precisam de Uhtred e não se arriscam a contrariá-lo tão explicitamente.

E então Uhtred odeia Alfredo.

O CAVALEIRO DA MORTE é uma troca de farpas entre cristãos e pagãos. Explora muito bem as personalidades e suas mutações em meio as crises. Lança a dificuldade e facilidade em acreditar em alguém, ou trair alguém; basta um bom motivo, um punhado de ouro, uma vingança mal acabada, uma falsa conversão à religião alheia. Neste livro Bernard Cornwell trabalhou bem as intrigas. Mas o fim que tudo isso leva é sempre o mesmo. Aquele fim direto, que encerra o assunto para um dos lados da discussão e fornece nova esperança para o outro. Essa discussão é feita no campo de morte com os exércitos se chocando. A única voz ali é a voz da espada. E enquanto essa voz não se cala, os homens alimentam aqueles dois apetites da fera.

Mas a fera nunca se satisfaz, de modo que outro banquete deve vir muito em breve.

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