sexta-feira, 19 de abril de 2013

A Canção da Espada

“Enquanto houver uma família chamada Uhtred, e enquanto houver um reino nesta ilha varrida pelo vento, haverá guerra. Portanto não podemos nos encolher para longe da guerra. Não podemos nos esconder de sua crueldade, de seu sangue, do fedor, da malignidade ou do júbilo, porque a guerra virá para nós, desejemos ou não. Guerra é destino, e o destino é inexorável.”
A Inglaterra está em paz, dividida entre o reino dinamarquês ao norte e o reino saxão de Wessex, ao sul. Uhtred, órfão da Nortúmbria, parece ter encontrado a tranquilidade. Ele é dono de terras, casado e com uma tarefa a cumprir: Alfredo quer manter intacta a fronteira junto ao Tâmisa. Mas os problemas aparecem quando uma nova horda de vikings chega para ocupar Londres. O sonho dos guerreiros do norte é conquistar Wessex. E, para isso, eles precisam da ajuda de Uhtred.
Mas Alfredo nutre outros planos. Ele insiste em que Uhtred expulse os invasores vikings de qualquer maneira. Naquele ano de 885, o guerreiro da Nortúmbria precisa decidir até que ponto seu juramento a Alfredo se mantém firme.
A CANÇÃO DA ESPADA conta a história da criação da Inglaterra e, como todos os romances de Bernard Cornwell, baseia-se em relatos verídicos. Mais uma empolgante história de amor, traição e violência, ambientada em um reino cindido por enormes conflitos, mas ao mesmo tempo instigado por um pequeno clarão de esperança de que Alfredo, o grande rei de Wessex, possa mostrar seu poder de união. Uhtred, o maior guerreiro do soberano, tornou-se sua espada, um homem temido e respeitado por toda a região, o senhor da guerra a serviço de um poderoso monarca.
Bernard Conrwell é um romancista histórico ─ escreve ficção mesclada com fatos reais da história de sua mãe terra, a Inglaterra. Seu espirito patriota é a pedra filosofal no desenvolvimento de cada livro, de modo que, nessas Crônicas Saxônicas, é notável o embasamento histórico do autor no simples fato de você terminar um livro e começar o seguinte.

Explico: por exemplo: o leitor vai terminar o livro 1 e começar o livro 2. Mas o livro 1 fecha perfeitamente; dá um belo ponto final, não sugerindo uma continuação. E o livro 2 não começa na sombra do livro 1; ele meio que inicia algo novo, quase que independente do que ocorreu no livro antecessor.

“Tá, e qual o ligamento com sua afirmação de embasamento histórico e blá-blá-blá? Você tá viajando lindo Torinks!”

Espera, estou explicando ainda: é que Cornwell está escrevendo a história da Inglaterra. E nessa história, há momentos eufóricos e longos hiatos. Então ele pega um período de, por exemplo, 5 anos em que ocorreram esse e aquele evento, e compila ambas passagens num único livro. Quando ele escreve a “continuação” num próximo livro há um salto temporal, um pulo por cima do período de hiato que houve de fato na história ─ períodos como longos invernos em que a guerra entrou em trégua e não aconteceu nada relevante. Então o livro seguinte inicia em outro período histórico, talvez 3 anos depois do final do livro anterior, focando em novos eventos datados naquela época. Em outras palavras, cada livro dessa série é um registro particular que juntos recontam a formação da Inglaterra. Daí vem minha admiração por este autor que, como disse, deixa seu estudo notável a cada livro concluído, a cada página virada.

Mas, falando brevemente do livro: Uhtred está feliz. Tem uma esposa, filhos e terras. Tem fortalezas para edificar e regiões para pastorear. Tem homens ao seu comando e tem reputação como principal guerreiro do rei. Tudo lindo. Mas ele mesmo diz que não haverá descanso enquanto existir dinamarqueses em terras saxãs. Mesmo que ambos os povos estejam com atividades militares inativas, Uhtred olha para o horizonte e sente o vento norte trazendo o cheiro de uma futura batalha. Só então, quando suas campanhas terminarem e os dinamarqueses perderem é que Uhtred poderá desfrutar de uma vida tranquila e satisfatória. Até lá, sua felicidade corre o risco de terminar em uma volta de lua.

Já Alfredo tenta expandir seu reino dando à seu genro, Æthelred, a missão de limpar algumas regiões. O Æthelred de Cornwell é um sujeito fácil de odiar, talvez pelo seu comportamento ciumento desde que se casou com a preciosa filha do rei ─ Ætheflaed. A trama deste livro gira, em grande parte, em torno desse casal. São personagens que, na história da Inglaterra, desempenharam papeis importantes de modo que deste livro pra frente ambos devem protagonizar a saga...

Limpar algumas regiões, eu disse. É o mesmo que expulsar/matar dinamarqueses. A começar por Londres e seus arredores, onde, em quase 400 páginas, aconteceram os tantos choques entre as forças de um dinamarquês chamado Sigefrid e os homens liderados por Uhtred, este que, inevitavelmente, foi convocado por Alfredo para prestar auxilio à Æthelred na captura de Londres.

E perto de Londres há um rio: Temes (ou Tâmisa). Ele corta a Inglaterra quase que de uma ponta a outra (perto da fronteira de Gales, passando por Londres e outras cidades, e desembocando no mar à leste). E na disputa por Londres, aquele rio ficou denso: cheio de navios de batalha no começo do dia e cheio de madeira destroçada e corpos boiando e sangue diluído no fim do dia. Pois A CANÇÃO DA ESPADA traz uma boa cota de batalhas navais. No geral, não muda o que é praxe do autor: guerras em grande e em pequena escala onde o ressoar das espadas é uma canção de júbilo para uns e uma sinfonia final para outros.

Mas Bafo de Serpente, a espada de Uhtred, quebra o paradigma: ela não canta como as outras espadas.

Ela grita:

Usei Bafo de Serpente. Minha espada curta, Ferrão de Vespa, geralmente era melhor numa parede de escudos, mas aqui o inimigo não podia se grudar em nós porque estávamos atrás de um banco de remador. Na linha central do navio, onde eu estava, não havia banco, mas um suporte de mastro servia como obstáculo, e eu precisava ficar olhando à esquerda e à direita, para além do suporte alto, para ver onde o pior perigo ameaçava. Um homem de barba revolta subiu no banco à frente de Rypere, pretendendo acertar um machado na cabeça dele, mas o sujeito segurou o escudo alto demais e Bafo de Serpente rasgou sua barriga por baixo e eu virei-a, puxei-a de lado e o machado dele caiu trás de Rypere enquanto o nórdico gritava e se retorcia em minha espada. Alguma coisa, machado ou espada, estava batendo em meu escudo, então o homem com a barriga rasgada caiu de lado sobre aquela arma, e o sangue correu pela lâmina de Bafo de Serpente esquentando minha mão.

Uma lança golpeou a meu lado, mas a estocada foi repelida por meu escudo. A lâmina da lança desapareceu, puxada para trás, e eu sobrepus meu escudo ao de Rypere logo antes de a lança golpear de novo. Deixe-a, lembro-me de ter pensado. Para passar por nós eles teriam de atravessar o banco que obstruía e lutar cara a cara, e eu olhei por cima da borda do escudo para ver os rostos barbudos. Estavam gritando, não faço ideia de que insultos lançavam contra nós, só soube que viriam de novo, e vieram, e mandei o escudo contra um homem no banco à esquerda e golpeei sua perna com Bafo de Serpente, um golpe ridículo, mas a bossa de meu escudo acertou sua barriga e o lançou para trás, e uma lâmina acertou a parte inferior de minha barriga, mas a malha não se rompeu. Agora eles estavam apinhando o navio, os homens de trás forçando os da frente contra nossas lâminas, mas o simples peso do ataque nos impelia para trás, e eu tinha uma leve consciência de que alguns de nossos homens defendiam nossas costas de um contra-ataque dos homens de Haesten que haviam abordado o Águia do Mar e agora tentavam retornar ao Viajante-Dragão. Dois homens conseguiram passar pelo suporte de mastro e me atacaram com os escudos, o impacto me lançando de lado e para trás. Tropecei em alguma coisa e caí sentado na beira de um banco e, num pânico cego, estoquei com Bafo de Serpente pela borda de meu escudo e senti-a furando malha, couro, pele, músculo e carne. Coisas se chocaram contra me escudo e eu fiz força para frente, a espada ainda presa na carne do inimigo, e milagrosamente não havia inimigo para me manter embaixo. Toquei os escudos da esquerda e da direita enquanto puxava e torcia Bafo de Serpente, libertando-a. Um machado se enganchou na borda superior de meu escudo e tentou puxá-lo para baixo, mas eu baixei o escudo, fiz o machado se soltar, levantei o escudo e minha espada estava livre de novo, e pude cravá-la no homem do machado. Tudo instinto, tudo fúria, tudo ódio e berros, tudo um borrão em minha mente agora.

Quanto tempo aquela luta durou?

Pode ter sido um instante ou uma hora. Até hoje não sei. Ouço meus poetas cantando sobre lutas de eras passadas e acho que não, não era assim, e certamente aquela luta a bordo do navio de Haesten não se pareceu nem um pouco com a versão que meus poetas gorjeiam. Não foi heroica nem grandiosa, e não foi um senhor de guerra distribuindo a morte com habilidade implacável com a espada. Foi pânico. Foi medo abjeto. Foram homens se cagando de medo, homens mijando, homens sangrando, homens fazendo careta e homens gritando pateticamente como crianças sendo chicoteadas. Era um caos de espadas voando, escudos se quebrando, vislumbres meio percebidos, defesas desesperadas, e estocadas cegas. Pés escorregavam no sangue e os mortos ficavam com as mãos enroladas, os feridos seguravam machucados medonhos que iriam matá-los, choravam chamando as mães e as gaivotas gritavam, e tudo isso os poetas celebram, porque esse é o trabalho deles. Fazem com que pareça maravilhoso. E o vento soprava fraco sobre a maré montante que enchia o riacho de Beamfleot com água em redemoinhos, onde o sangue recém-derramado se retorcia e desbotava, desbotava e se retorcia, até ser diluído pelo mar verde e frio.

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