segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O Andarilho

O Santo Graal, a relíquia sagrada da cristandade, inspirou muitas obras-primas da literatura. Tornou-se o mais mítico dos objetos, imortalizado no imaginário de todo o mundo ocidental. Sua lenda é normalmente ligada às histórias de Artur e seus cavaleiros, mas, desta vez, a imaginação de Bernard Cornwell transporta a saga de sua busca para o século XIV, em plena Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França.

O Andarilho é o segundo capítulo desta aventura, iniciada com o empolgante romance O Arqueiro. Após sobreviver à Batalha de Crécy, Thomas de Hookton, o valente arqueiro inglês, é enviado pelo rei numa missão na qual teria de descobrir mais sobreo legado de seu pai, que parece ligado ao Graal. Mas Thomas acaba envolvido na luta contra um exército invasor e, nas fileiras inimigas, descobre que há outros na trilha do objeto sagrado. Homens que não se deterão diante de obstáculo algum. Thomas, então, volta à sua aldeia natal em busca de um indício que possa colocá-lo no caminho certo. E encontra pistas que o deixam sob risco ainda maior e que apontam novas direções para a sua missão.

Cornwell confirma com O Andarilho a reputação conquistada com sua releitura das aventuras de Artur. Um livro apaixonante sobre um dos períodos mais conturbados da história inglesa.

Guerras eram oportunidades de ficar rico. Após uma batalha, quando uma cidade era tomada, o exército conquistador corria pelas ruas, seus homens tais como lobos famintos, pois agora chegara a melhor parte: o momento do saque. Eles escolhiam as maiores casas para reivindicar como moradias, o que incluía toda sorte de ouro, equipamentos e provisões que houvesse lá dentro. E um soldado atrasado não poderia chegar numa casa já reivindicada e discutir as posses ─ a lei da guerra dava pleno direito àquele que chegara primeiro, de modo que haveria violência se alguém dissesse que não, essa casa é minha, não sua! Antes mesmo de chegar numa cidade, de uma batalha mortal e da vitória, esse mesmo exército já passara pilhando os vilarejos nas redondezas. Novas montarias, roupas, comidas, mulheres. E depois do butim tocavam fogo em tudo. Aquilo, além de abastecer o exército, servia para chamar atenção do inimigo a fim de que eles chegassem para o resgate dos vilarejos, largando mão das defesas de seus muros e fortalezas, dando combate em campo aberto.

Essas coisas foram bem relatadas n’O Arqueiro, primeiro livro da trilogia A Busca do Graal. E n’O Andarilho, temos a ênfase numa outra forma de ganhar ouro abundante: resgates. Pois se eu, em meio o choque de tropas, capturo um nobre inimigo, então já posso gritar de alegria, pois estou rico. Levo o nobre sob minha proteção (aqui, as mesmas regras sobre reivindicar casas) e passo a negociar o resgate do homem mandando cartas para seus superiores ou familiares. Uma parte do dinheiro do resgate fica com o exército, e a outra parte é só minha. E assim os homens ficavam ricos e importantes. Já o nobre, que fora resgatado, é agora um pobre diabo endividado que, na próxima batalha, irá gritar para os seus homens algo como “se for um conde ou alguém de sangue nobre, eu o quero vivo. Vivo!”, pois ai ele irá pedir o resgate do capturado e com o dinheiro irá pagar suas dividas recentes. E as quantias de resgate, como bem cita Bernard Cornwell em sua nota final, eram absurdas, de fato enriqueciam um lado e empobreciam o outro.

Outra coisa muito interessante são os trechos que descrevem bem por cima a Inquisição, a ordem daqueles homens santos responsáveis por descobrir a heresia e eliminá-la. Mestres na tortura e adoradores de piras flamejantes. Cornwell diz que eles tinham um código: jamais derrubar sangue:

A Inquisição, tal como a ordem de frades dominicanos, era dedicada à erradicação da heresia, e para isso empregava fogo e sofrimento. Eles não podiam derramar sangue, porque isso era contra a lei de Deus, mas qualquer sofrimento provocado sem derramamento de sangue era permitido, e a Inquisição sabia bem que o fogo cauterizava o sangramento e que a tortura não perfurava a pele de um herege e que grandes pesos colocados sobre o peito de um homem não rompiam veia alguma. Em porões fedendo a fogo, medo, urina e fumaça, numa escuridão cortada pela chama de um fogo e pelos gritos dos hereges, a Inquisição caçava os inimigos de Deus e, pela aplicação da dor sem sangue, levava suas almas à bendita unidade com Cristo.

E o texto do autor segue a linha de raciocínio do personagem do momento, no caso um inquisidor. Se fosse um herege, certamente o texto falaria que a Inquisição causava dor para que os torturados confessassem qualquer coisa a fim de que as dores parassem. Assim, sobre uma tortura pesada, qualquer um poderia ser um herege, um amante do diabo, etc.

Esses e outros detalhes de como as coisas eram naquela época ruminam aos montes deste livro, que consegue ser melhor do que O Arqueiro. Bem, ao menos pra mim foi um livro melhor. Talvez pelo fato de traçar uma jornada mais individual, ao passo que no primeiro livro temos mais guerras e experiências coletivas. Em O Andarilho Thomas vaga de um lado ao outro atrás de uma pista do Graal; e acompanhar sua busca, com tantas perdas e poucos ganhos, chega a ser um tanto mais interessante do que ver batalhas atrás de batalhas. Não que este livro não tenha batalhas, nada disso: logo no início os escoceses são comprados pelos franceses para atacar os ingleses pelas costas, e isso rende as primeiras 100 páginas de muita espada cortando garganta e flechas furando cota de malha e carne e osso, carne e cota de malha de novo.

Mas Thomas não é o único atrás do cálice de Cristo. Outros homens almejam a relíquia, crentes que assim que o Graal fosse descoberto o mal seria extirpado da Terra. Homens que não tem escrúpulos em matar mulheres indefesas ou até mesmo outros irmãos na fé; pois o que importa é o serviço de Deus que é encontrar o Graal, e isso deve ser feito mesmo que algumas pessoas tenham de morrer. E neste livro Cornwell é um vilão com seus leitores: assassina personagens que aprendemos a amar. E essas mortes só acentuam o real poder do Graal: deixar os homens loucos e cegos, obcecados em tomar um poder que imaginam existir.

Livro épico, por falta de um elogio mais forte.

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