sábado, 1 de dezembro de 2012

É com S ou Ç?

Nunca fui muito fã de português. Tudo que lembro é o meu antigo professor dizendo “conjugue o verbo correr”. Eu escrevia qualquer coisa no caderno, totalmente despreocupado, pois iria passar de ano conjugando ou não aquele tal verbo. Depois quase sempre rasgava a folha e fazia uma bolinha de papel ─ munição básica para entrar nas guerras que fazíamos. Quando alguém começava ─ acertando um zé mané desprevenido ─, eu já estava pronto, prestes à massacrar aqueles estudantes exemplares que sentavam na frente e gostavam de apagar a lousa para o professor. Ah como eu odiava eles, eram meus alvos preferidos. Alguns falavam “para ô!” ou tentavam ignorar ou faziam cara de choro, mas no fim todos participavam, amassando papel e fazendo da sala de aula uma zona militar.

Daí o professor ficava puto e a aula danava.

Nessa, nunca levei muito à sério aquela disciplina.

E agora eu sinto muito por isso: Pois, olhando para o meu texto, não sei se essa palavra é com S ou Ç.

Enquanto eu tentava escolher uma palavra melhor ─ uma que eu saberia escrever ─, Três-Dedos chegou do meu lado.

─ Terminou de ler já? ─ Ele perguntou.

─ Terminei ontem. ─ menti.

Pois Crime e Castigo é um livro muito chato. Não tem um desenho se quer! Não consegui ler ele inteiro, mal passei da metade. E além do mais, deram somente 30 dias para terminar com o livro. Nunca conseguiria! Mas podia fingir que sim, que tinha encerrado a leitura.

─ E já está fazendo isso ─ ele apontou para o texto que eu escrevia.

─ É. ─ eu não estava muito de conversa. Queria sossego. Queria escrever o raio da resenha em sossego.

Três-Dedos ia indo embora, mas quem sabe ele poderia me ajudar. Chamei:

─ Ei, veja aqui ─ mostrei a folha pra ele, pus o dedo na palavra ─ é com S ou Ç?

Ele leu. Leu de novo. Enrugou a cara, como se usar o cérebro fosse doloroso demais. E finalmente:

─ É com X.

─ Ah.

Que vergonha. Aquele cara me corrigiu com tanta autoridade que eu senti vergonha. Logo ele, um idiota que se automutilou numa máquina de cortar frios, perdendo dois dedos, quando trabalhava num açougue miserável.

─ Valeu. ─ eu disse, engolindo o orgulho. Apesar de tudo, não sou mal agradecido.

Ele se mandou. Foi olhar, pela janela, o dia de sol que fazia lá fora.

Continuei a resenha, corrigindo a palavra da forma certa, graças ao Três-Dedos.

Só que não.

Eu poderia confiar no português de um parceiro de cela? Era um risco que eu começava a considerar perigoso para a qualidade do meu texto. Resolvi ir até a grade e avistei um carcereiro de bobeira no corredor.

─ Colega ─ acenei. Ele caminhou pra perto com as mãos no cinto. Viu que eu trabalhava na resenha do livro Crime e Castigo e fez aquela cara de interrogação. ─ É com S ou Ç? ─ e mostrei a palavra.

─ É com CH. ─ Ele foi rápido, isso era bom sinal.

Mas sei lá, eu ainda tinha minhas dúvidas. Por isso:

─ Tem um dicionário ai?

Ele mediu meu pedido, julgando ali na hora o tipo de resposta que eu merecia. Até que eu estava me comportando bem, desde que a iniciativa de leitura começou. E ele sabia disso, que eu era agora um bom presidiário. Decidiu ser boa gente comigo:

─ Vou ver se acho. ─ Girou nos calcanhares e foi procurar alguém que soubesse onde encontrar um dicionário.

Aquele carcereiro lembrava muito meu antigo parceiro. Aquele que morreu quando fui preso.

Foi quando estávamos roubando um mercado. Naquele dia demos azar, pois os policiais estavam há somente duas quadras de distância, pegando alguns traficantes. Saímos do mercado e já fomos surpreendidos. Nem dava pra voltar até o carro, do outro lado da rua.

Lembro como se fosse hoje, o meu parceiro com aquela cara de desespero, arregaçando a boca pra gritar:

Corre maluco!

Não sei por que, mas naquela hora lembrei do meu professor de português. Eu corro, meu parceiro corre, os policiais correm, todos nós corremos. E aqui, uma nova conjugação: os cachorros correm muito mais. Foi assim que me pegaram. Tenho até hoje a marca de mordida na panturrilha esquerda. Maldito pastor alemão, se os fardados não chegassem a tempo, aquele animal ia arrancar minha perna.

Meu parceiro foi mais longe. Subiu algum lance de escada de algum conjunto habitacional, foi dar algum salto de uma laje pra outra, perdeu o equilíbrio e caiu de boca num daqueles portões urbanos antigos, com replicas de lanças medievais. Pobre diabo, nem sentiu a morte que teve: empalado feito churrasco no espeto. Soube que foi uma trabalheira deselegante para os oficiais desgrudarem o defunto do portão. Fazer o que, ossos do oficio.

O carcereiro voltou com um Aurélio azul na mão.

─ Valeu. ─ eu disse.

─ Amanhã parece que vai chegar mais livros ─ passou o dicionário pelas barras e de repente quis puxar assunto ─ Do William Shakespeare e Camilo Castelo Branco.

─ Ah ─ e eu continuava sem querer muita conversa.

─ Tem um tal de A Divina Comédia também.

Esse eu já tinha ouvido falar.

─ Deve ser bom ─ eu falei, agora um pouco mais social ─ deve ser uma comédia hilária com os personagens da Bíblia.

─ É, deve ser ─ concordou com uma risadinha nervosa.

E o assunto morreu. Ele deu as costas e foi ficar de bobeira no corredor enquanto eu voltei para o meu canto, abrindo o dicionário na letra da palavra que me afligia. Finalmente, saberia com que letra se escrevia a dita cuja. E só agora reparei no perfeito estado do Aurélio. Lindo, bem conservado, nenhuma rasura ou orelha na capa. Novo.

Só que ao contrário.

Aquilo era mais velho que a cadeia onde eu estava. Quase entrei em depressão quando não achei o que queria.

Fui até as barras, chamei o carcereiro de novo.

─ Tá faltando um monte de páginas nisso aqui ─ balancei aquela velharia, indignado. Diabos, algum santo removeu varias páginas, dentre elas, a que eu deveria encontrar a palavra ─ Não tem outro não?

Ele estalou o beiço e fez que não, aquele era o único que sobrara. Pegou o dicionário e deu de ombros, como se dissesse “paciência meu chapa, quem mandou ser burro?”. Respirei, tentando ficar calmo.

O radinho dele apitou e uma voz chiada falou do outro lado da transmissão. Era hora da visita. Tentei entender o que a voz dizia, mas não tive sucesso. Mas ele entendeu tudo, olhou pra mim e sibilou:

─ Visita.

Puxa. Fazia tempo que não me visitavam. Quem poderia ser? Guardei o livro e o meu texto, acenei pro Três-Dedos e me acheguei na cela que estava pra ser aberta. Súbito, resolvi voltar e pegar meu texto, olhando com desconfiança para o meu companheiro de cela. Três-Dedos percebeu e me xingou.

─ Você acha que eu vou roubar essa merda ai?! Tsc ─ ele chiou, e eu senti que sim, ele iria roubar meu texto caso eu deixasse lá. Ladrão conhece ladrão.

Saí da cela e me algemaram. Um minuto mais tarde eu já estava na sala de visita. Avistei minha tia e fiquei feliz por ser ela, e não qualquer outro parente. Sentei na cadeira e pus as mãos na mesa. Do outro lado, minha tia. Ficamos um tempinho em silêncio.

─ Que isso? ─ ela perguntou, quando viu uma folha dobrada em minhas mãos.

Expliquei para ela que era uma resenha de um livro. Ela ficou espantada, naturalmente, pois eu nunca fui de ler livros, quanto mais escrever. É claro, havia um bom motivo para isso. Justifiquei:

─ É um programa ai, de educação, sabe? É só ler um livro e escrever uma resenha. Se ficar boa, diminuem minha pena em 4 dias. Legal né? Só que não posso escolher os livros. Por enquanto só trouxeram um, um que nem tem ilustrações! Zuado. Mas já terminei e agora tô escrevendo a resenha. Aproposito ─ Mas que droga, eu perdendo tempo quando poderia matar minha dúvida. Minha tia deveria ser boa de português. Abri a folha e mostrei o texto pra ela. Mostrei o raio da palavra e: ─, é com S ou Ç?

Três-Dedos disse X. O carcereiro, CH. Mas eu tinha certeza que era com S, ou Ç. E agora eu estava prestes a descobrir. Na minha tia eu podia confiar.

Finalmente, finalmente!

Ela me disse. Minha reação foi:

─ Ah.

Estava aliviado. Aquela palavra nem existia.

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