sábado, 25 de agosto de 2012

Sonata do bardo 1

12º dia do 7º mês, Luvitas. Ano 1400.


Estávamos viajando há dias. Não que a distância de Karitania à Luvian fosse enorme, não era isso. O problema era o clima. O inverno chegara do Norte, e meio dia de neve caindo sem intervalo foi o suficiente para esconder as estradas. Por isso, estávamos atrasados em algum ponto esquecido pelos deuses, bem ali, no norte de Fortuna; que era um reino simples, apesar do nome. Mas para um pequeno time de menestréis como nós, seria fácil encher os bolsos de fortuna. A vila Karitania provara isso; em apenas uma semana rendemos ótimas moedas com apresentações breves em tavernas e numa praça local. Ainda não tínhamos um nome, então ficamos conhecidos como “Torinks e o seu bando”, o que era uma injustiça com meus camaradas músicos, além de ser um titulo estúpido. E, acima de tudo, éramos apenas quatro. E quatro pessoas é pouco para ser chamado de “bando”.

Então: precisávamos de um nome, com urgência. Ao menos antes de alcançarmos Luvian, que era nossa próxima parada.

Numa noite em que me lembro, descansávamos ao lado de uma fogueira, num campo cercado de pedras, gramas rasas e algumas árvores. Rark cutucava as unhas com uma faca de gume cego. Eu estava estudando sua vã tentativa de higiene. Quando ele me percebeu ali, ao seu lado, bufou:

─ Não deveria ter deixado secar. ─ suas as mãos estavam vermelhas de sangue. O liquido rubro havia secado por baixo das unhas, formando crostas de sujeira. ─ Tem água no seu odre?

Fiz que não.

─ Então vou ter que mijar nas mãos.

E aquilo só não soou engraçado porque vinha de Rark. Rark era um sujeito sério, de poucas palavras. Gostava dele por causa disso. E gostava dele ainda mais por saber que era meu aliado e não inimigo. Naquela manhã o vi em combate. Daí a origem daquele sangue em suas mãos: era de um sujeito que o tomou como adversário, e no fim teve a garganta rasgada. Esguichou sangue pra todo lado, e as mãos do Rark ficaram daquele jeito.

─ Por isso prefiro matar à distância. ─ eu disse ─ Não esguicha sangue dos outros em você e, com sorte, os indivíduos morrem sem saber o que aconteceu.

Rark olhou para o meu arco ali ao lado. Bufou de novo:

─ Em minha terra, você seria chamado de covarde. Somente aqueles que veem os olhos de seus inimigos, face a face, compartilham a benção de um campo de batalha. Matar a distância é falta de virilidade.

Eu concordei com a cabeça, embora discordasse do discurso. Até porque, quem sou eu para desmenti-lo? Longe de mim tal tarefa. Lembra? Gosto de Rark por ser meu aliado, o que implica jamais discutir com ele.

Rark fez um muxoxo para as mãos e largou a faca de lado. Levantou-se e foi pra trás de uma árvore; a natureza chamando. Talvez fosse mijar nas mãos, como dissera. E enquanto Grilo e Larien não voltavam com mais lenha, eu puxei meu alaúde pra perto, a fim de ajustar alguma corda frouxa, depois, fiz o mesmo com a corda do meu arco.

Pois sim, eu não era um simples bardo. Não éramos um simples grupo de menestréis que só sabiam de música. Tínhamos outros meios de sobrevivência, caso a vida nos provasse...

Aqueles bandidos de hoje cedo quem o digam...

Exceto que não eram simples bandidos.

Foi quando saímos de Karitania, quatro ou cinco dias atrás. Todos na vila viram que estávamos tilintando de moedas, graças às apresentações. Até compramos os melhores cavalos disponíveis e provisões para uma semana ou mais. Logo, atraímos a atenção de um grupo mal encarado que perambulava por lá. Ao deixar a vila, eles seguiram nossos rastros. Fui perceber que estávamos sendo seguidos somente depois de dois dias de cavalgada. Eu e o meu bando ficamos espertos, esperando por um ataque que nunca vinha. Aquele jogo começava a nos cansar. Principalmente a Larien, a única dama do grupo, tão inocente é bela quanto um machado de duas lâminas pronto pra matar.

─ Vamos recuar e pegar esses caras de frente ─ ela disse, certa hora.

Rark gostou daquilo, mas ainda preferia ouvir minha opinião. Ele gostava de uma pancadaria, mas era prudente demais para se atirar como Larien estava disposta a fazer. Olharam pra mim, aguardando.

─ Deixem passar só mais esta noite. ─ decretei. Não que eu fosse um líder ali, mas geralmente concordavam comigo quando decidia algo.

Esperamos. A noite veio e foi. A aurora deu as caras no horizonte, e começamos a seguir. Nesse meio termo, começou a nevar.

De longe avistamos uma elevação rochosa. Rark e Larien deixaram os cavalos para trás e foram bater o terreno. Era um ótimo lugar para uma emboscada. Isso se não estivéssemos caindo em uma. Bandidos normais simplesmente nos atacariam na noite; não fazia sentido eles nos seguirem por tanto tempo se não houvesse um plano maior oculto nisso. Fosse o que fosse, íamos dar um fim para a novela.

Eu e Grilo seguimos até a elevação. Grilo. Chamamos ele assim pois o nome que sua mãe lhe deu é um problemão na hora de pronunciar. E o rapaz é magro, esguio e ligeiro; tudo a ver com “Grilo”.

─ Não gosto disso ─ ele disse. Grilo tinha mania de afirmar ser sensível à coisas ruins. Não demorou muito e ele concluiu: ─ Torinks, to com um mau pressentimento. Poderíamos tentar conversar, ou ─

Abanei o comentário dele pra longe. Tínhamos ouro e estávamos sendo seguidos. Não tem o que conversar nesse cenário.

─ Relaxa. ─ sussurrei ─ Vai acabar rápido.

Paramos. Eu e Grilo e os quatro cavalos. Passamos a fingir estar alimentando os bichos ou tirando água do joelho ou qualquer outra coisa. De longe, já podíamos ver nossos perseguidores. Estavam meio ocultos por causa da neve que deixava toda paisagem branca, e por causa de uma dúzia de pinheiros que separava o caminho de onde tínhamos vindo da elevação onde estávamos. Os caras ficaram parados lá por um tempo, e eu já estava me chateando. Olhei de um lado ao outro; sem sinal de Rark ou Larien.

─ Quantos são? ─ ouvi Grilo perguntar atrás de mim.

Estreitei os olhos e enxerguei oito. Impaciente e começando a congelar (pois lá em cima o vento de inverno estava realmente animado), saquei o arco e puxei uma flecha, ajeitei ambos à minha frente, fiz mira, disparei.

─ Sete. ─ respondi, quando vi que matara um deles.

Então as coisas ficaram mais dinâmicas. Os bandidos avançaram. Um deles tinha uma besta, com o qual acertou um virote em meu cavalo. O pobre animal deu um salto de susto e dor, pisou numa pedra escorregadia e rolou encosta abaixo. No instante seguinte eu acertei o nariz do besteiro com uma seta, e foi sua vez de rolar pra baixo. Quando fiz mira pra matar outro, um vento misterioso bateu nas minhas costas e eu me atrapalhei, tentei me mexer, mas descobri que tinha um pé travado numa droga de raiz. Quando olhei para o inimigo, ele já estava na minha sombra, erguendo o machado contra o meu crânio. Nem tive tempo de ficar surpreso, apenas me joguei de lado e a lâmina inimiga passou rente meu ombro. Cai no chão. Ouvi Grilo gritar alguma coisa logo ao lado, mas outro vento sinistro uivou e encobriu sua voz.

Não entendi direito, mas acho que Grilo se jogou contra o sujeito de machado que iria me matar. Ambos escorregaram pra longe, rolando, a alguns segundos de cair da elevação. Libertei meu pé da raiz e tentei ir ao resgate, mas ambos, inimigo e amigo, já haviam sumido.

Bati os dentes e gritei “merda” em pensamento. Grilo era um bom rapaz, e um ótimo percussionista. Seu senso de ritmo era o melhor que encontrara. Seria difícil substituí-lo... Mas não era hora de lamentar. Mais tarde eu faria isso. Virei-me e vi que mais três sujeitos corriam pra mim.

Matei-os. Coração, garganta, olho esquerdo. Uma seta pra cada.

Longe, ouvi alguns ruídos de briga. Pude ver Larien trocando golpes de espadas com um, enquanto outros dois jaziam caídos ao seu lado. Ela estava em algum ponto no começo da elevação. E lá embaixo vi Rark, entre os pinheiros. De alguma forma ele havia se escondido por ali, pensei, surpreendendo os bandidos pelas costas. Já tinha matado meia dúzia (provando que o grupo não tinha somente oito, como avistara) e um último adversário lhe desarmara, jogando seu pequeno machado pra longe.

Peguei outra flecha pra matar aquele último bandido, antes que ele terminasse com Rark. Perdera o percursionista, não podia perder o flautista também.

Meu tiro foi débil, por causa dos fortes ventos, acertando uma panturrilha ao invés da nuca. Mas foi o suficiente: Rark aproveitou o espasmo de dor do inimigo e agarrou sua garganta num bote maligno. Puxou o braço pra trás, e a garganta do cara veio em sua mão. O homem caiu morto e Rark ficou sujo de sangue.

─ Vamos sair daqui. ─ gritou Rark, assim que subiu pra perto, junto com Larien ─ Acho que tem mais deles vindo.

─ E o Grilo? ─ perguntou Larien, ofegante. Tinha uma coxa sangrando; um corte feio que acabara de ganhar na luta. Mal parecia ter notado. Eu notei, e fiquei pensando que aquilo poderia gangrenar facilmente. De repente ela já estava ao meu lado, repetindo: ─ Torinks, cadê o raio do Grilo?

─ Ele caiu.

─ Puta merda.

─ Vamos, rápido ─ era Rark, já aprontando os cavalos.

Quando saímos da elevação rochosa, do outro lado, Grilo estava nos esperando.

─ Minha roupa prendeu numa raiz e eu desci escalando ─ justificou, quando encaramos ele pedindo uma explicação. Mais tarde, agradeci por ter me salvado e, principalmente, por não ter morrido.

Desde então seguimos o dia inteiro num tipo de fuga. Certamente a neve que caía encobriu os rastros na neve que cobria o solo, então, dificilmente estávamos sendo seguidos. Mas por garantia, adiantamos o passo. No meio da viagem, Grilo mostrou um broche que sem querer havia pegado do homem que caíra com ele, mas não tivera a mesma sorte de se prender numa raiz.

─ Ou ele roubou isso do verdadeiro dono ─ disse o rapaz, mostrando o item com uma heráldica esquisita ─ ou ele era o verdadeiro dono. O que significa que matamos um membro do Conselho.

Aquilo poderia ser preocupante.

─ Quer dizer que o Conselho desse reino tem um membro que nas horas vagas sai por ai aterrorizando viajantes de bolsas cheias? ─ objetei e não esperei uma réplica ─ Muito difícil. Deve ter roubado do verdadeiro dono.

E passou. A noite veio, Larien e Grilo foram buscar lenha para manter a fogueira e Rark tentava limpar as mãos. No dia seguinte iríamos seguir viagem até Luvian e continuar a vida. Se a neve desse trégua, chegariamos em menos de dois dias. ■



Hoje. 29º dia do 12º mês, Aurea. Ano 1400.


“Exceto que não eram simples bandidos”, foi o que eu disse lá encima.

Pois é. O cara que quase me matou era sim um membro do Conselho. Nem sei direito como é constituído esse diabo de conselho, e nem me lembro o nome do regente de Fortuna, mas depois descobri que o cara era importante. “Dane-se, ele nos atacou e nós o revidamos”, foi meu pensamento defensivo. E outra: não sobrou ninguém pra contar a história. Matamos todos e depois picamos a mula. Não havia perigo.

Exceto que sempre sobra um moribundo desgraçado que tem tempo de ser resgatado, e só morre depois de contar tudo o que viu.

Maldito.

Talvez por esse tal eu estou onde estou, hoje, no presente momento.

A primeira parte do meu relato é de meses atrás, quando tudo começou. Já essa nota final é o meu diário de prisioneiro.

Ao menos a cela é quente.

E agora, tenho que parar de escrever e esperar o carcereiro me entregar mais tinta. Provavelmente, só daqui dois dias. Ou mais.

Até lá, posso pensar em como narrar a continuação. Aliás, tenho de me esforçar para lembrar as aparências e personalidades dos meus companheiros. Rark, Larien e Grilo. Éramos um bom grupo. 

Hoje, estão todos mortos. ■
 
 

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