domingo, 12 de agosto de 2012

Dia dos pais

Poucos me reconheceram, e menos ainda vieram falar comigo. Os demais eram rostos desconhecidos para mim; afinal, estive fora por muitos anos, e muitos se mudaram, morreram ou não estavam na favela naquele domingo.

Nostalgia. Eu cresci naquele lugar. Corria em meio aquelas ruelas. Pulava de telha em telha. Empinava pipa. Pichava. Passava trote com os orelhões.

Bons tempos.

Depois, quando meu ultimo dente de leite se foi, eu deixei as coisas de menino de lado, e fui iniciado no mundo das drogas. Deveria ter 13, não lembro direito. Há quem diga que demorei, até. Amigos sempre jogavam na minha cara: “Vendi minha primeira pedra com 7”. Não importava, eu estava no mesmo negócio que eles há muito tempo. Vi muitos saírem do ramo, outros, apreendidos pelos fardados da justiça. Naqueles anos a batalha cresceu, e não demorou muito até eu conseguir meu primeiro calibre .38 com qual furei policiais e rivais de trafico. No inicio eu tinha mania de contar quantos matara; sabe como é, mania de jovem. Mas depois, aos 16, deixei de contar mortes pra contar notas; afinal a venda de drogas se mostrou um investimento maravilhoso.

Bons tempos. Eram bons tempos.
Até que fui pego, é claro.

Desde então: cela, calor humano, banho de sol. Lá, perdi minha capacidade de contar, então nem lembro quanto tempo fiquei apreendido. Mais tarde fui considerado “de maior” e me mandaram pra um lugar mais feio e populoso, mas que tinha direito a visita íntima, cigarro, Rede Globo, Rede Record e TV Cultura.

E no presente momento eu estava de volta. A data permitia.

Aliás, esse é um privilégio que eu nunca entendi direito: liberar presidiário no dia dos pais, mães, crianças, natal, carnaval, e por ai vai. E essas datas eram ótimas para dar uma saída e conseguir uns lances. Os cidadãos civilizados mal reparam: a criminalidade sempre aumenta nos meados dessas datas. E essa falta de atenção é vantagem para nós que sempre o apanhamos dizendo “entra no carro, é um sequestro”, ou, “bolsa e jóias, agora”. Depois do ocorrido, eles fazem queixa (o que não dá em nada, pois a policia também tem que curtir o dia dos pais, mães, crianças, natal, carnaval), reclamam com qualquer um sobre o perigo nas ruas, testemunham no jornal do Datena, e passam a ficar mais espertos a qualquer abordagem de bandido. Mas é temporário, pois no próximo dia de festa eles são pegos de novo e de novo; desatentos, graças à data.

Esse assunto me lembra que tenho de comprar umas caixas de kopenhagen, daqueles de comercial de TV com o Edson Celulari. Depois, embrulhar em papel de presente e mandar para o governador, agradecendo pelo puta privilégio que ele dá aos tantos mil coisa ruim, inimigos públicos, que ─ curiosamente! ─ nem devem ter pai ou mãe ou criança.

Estou incluso entre esses coisa ruim. Mas ao menos tenho um pai.

De frente para casa, reparei que pouco havia mudado. A fachada era mais desbotada, e a fechadura estava diferente. De resto, tudo igual ao que eu tinha em memória. Avancei e bati na porta.

Veio um grito de dentro. Acho que disse “só um instante”. Voz de mulher.

Quando abriu a porta, ficou frustrada. Certamente minha irmã estava esperando outra pessoa e a ultima que imaginava ver era o irmão criminoso. Confesso que fiquei tão surpreso quanto ela; a menina se tornara uma linda jovem, tanto que por um piscar eu não dei conta de quem seria aquela figura.

Perguntei pelo pai. Ela bufou e recuou pra dentro, deixando a porta meio aberta. Quase entrei, mas pensei melhor e resolvi ficar sobre o capacho mesmo.

No instante seguinte o velho de bengala surgiu diante de mim. Ficamos nos encarando, um avaliando o outro e vendo o que os anos haviam feito. Eu tinha crescido em altura e em barba, ele, diminuiu, ficando corcunda. Seu olhar era um misto de fúria e tristeza que eu já estava acostumado, mas era bom rever aquilo, depois de tanto tempo. Seus olhos diziam “o que diabos você esta fazendo aqui?”. Então, ele baixou o olhar para a sacola que eu carregava no punho esquerdo. Olhou de volta pra mim. E agora ele dizia algo tipo “e o que significa isso?”

Eu tinha que ser rápido. Iria voltar à ativa naquela tarde e no dia seguinte e quem sabe voltar pra cadeia, mesmo sabendo que a maioria não o faz. Estava passando rapidamente ali, para uma visita singela. Tinha de ser rápido. Então:

─ Presente pro senhor ─ disse, meio rouco. Tentei um sorriso amistoso, mas o olhar dele sugeriu que eu não tinha me saído bem na tentativa.

Será possível? Eu estava tenso diante do meu pai? Que pensamento estranho. Fiquei só um pouco mais perturbado quando percebi que o homem não iria me responder. Ficou lá, parado, me encarando.

Até que suas mãos se moveram. A bengala caiu.

─ Sabe que não deveria vir ─ ele disse quanto tocou meus ombros. Não havia raiva na voz, mas não sei dizer o que era aquilo. Um tipo de ternura tensa. Uma repreensão rígida e amorosa.

Meti a mão na sacola que trazia e tirei um CD de lá. Sabia que ele era um eclético de grandes hit’s antigos. Iria gostar daquela coleção. No entanto, ele ignorou a foto do Sinatra na capa do CD.

─ Tem Frank Sinatra, Phil Collins, Queen, Etta James, Eric Clapton, dentre outros ─ eu ainda estava tenso, principalmente com ele segurando meus ombros daquele jeito.

Pude ler seus olhos de novo. Diziam “onde foi que eu errei?”. Eu deveria ser sua vergonha. O filho bastardo que trilhou o mau caminho. E talvez aqueles presentes fossem um sal na ferida. E ele sabia. Sabia que aqueles discos importados eram fruto do crime. Adquiri eles graças a um amigo, dono de restaurante. Me indicou onde comprar os presentes e me indicou seu restaurante para conseguir o dinheiro. Me mandou a mensagem confirmando o tramite: “Aqui o movimento é bom. Se você passar às 22h irá conseguir uma boa remuneração. Claro, é 60%/40%, afinal estou lhe dando o ponto de ação, mereço a maior parte. Arruma uns dois camaradas, mascaras e, claro, trate de chegar gritando.”

Ninguém jamais suspeita que o dono do negócio possa fazer algo do tipo com o próprio negócio. Era um bom ramo. E vem ganhado força nos últimos tempos, segundo esse meu amigo. De fato, na TV só se ouve falar de arrastões.

Enfim, resumindo, 1/3 da grana foi para os discos importados.

Tentei me desvencilhar das mãos do velho para poder entregar o presente e me mandar. Mas ele me puxou pra perto e quando pisquei, já estávamos abraçados. Sua respiração no meu cangote era profunda, como se sentisse dor.

─ Feliz dia dos pais ─ eu sussurrei para aquele homem que me apertava contra o peito.

O mesmo homem que um dia abriu uma escola de boxe. Treinou um monte de guris na arte do Balboa, incluindo eu. Sempre fez o melhor para sua comunidade, tirando a rapaziada das ruas e metendo em suas cabeças vazias o compromisso com o ringue e a obstinação em superar as capacidades do dia anterior e do antes desse. Treino, disciplina, respeito; qualidades que afastaram muitos do crime.

Meu pai era um messias em meio o Armageddon.

Até que o diabo mandou seus demônios.

O professor de boxe estava atrapalhando os negócios. Os grandes da favela começaram a se incomodar com a perda de jovens. Pois todos sabemos que hoje uma criança traficante rende mais que um adulto. A policia passa, fala grosso, da um tapa, mas raramente algo critico acontece. No dia seguinte o mesmo moleque esta vendendo crack na quebrada. E os negócios fluem como um córrego fedorento.

Mas meu pai tomou o desafio de impedir que crianças nadassem nesse córrego.

Em pouco tempo, os traficantes perderam boa parte de suas crianças.

Foram falar com o meu pai. No fim da conversa meu bom velho tinha as duas pernas quebradas, um ombro deslocado, inúmeros hematomas na face e duas balas no peito.

Os médicos de plantão o levaram. Todos bem crentes que aquele homem morreria antes de chegar ao hospital. Daí, foram surpreendidos quando uma rápida cirurgia estabilizou o boxeador. Mas o hospital não tinha um leito adequado para atender o homem, e ele morreria de uma forma ou de outra. Agora, era só uma questão de tempo.

Mas não podia ser assim! Não fazia sentido ele morrer. Era injusto demais. Ele era um herói naquela favela. Era o meu herói.

E eu estava disposto a salvá-lo.

Foi quando entrei para o tráfico.

O rápido dinheiro que veio foi todo na entrada de um hospital particular. Arranjaram as pernas do meu pai, deram pontos em suas feridas de tiro, e pronto: o homem viveu. E eu comecei a pagar o preço.

O hospital era caro, então eu tinha de continuar no crime. Não havia outra escolha. E, alem do mais, os traficantes não me deixariam ir depois do talento que demonstrei ter.

Mais tarde, quando meu pai voltou pra casa, eu soube que era hora de ir. Meu herói estava salvo, mas o vilão ainda tinha de pagar.

Fui atrás dos grandes.

E a única forma de vencer o diabo, é virando seus próprios demônios contra ele.

Algumas ligações anônimas. Uma arma roubada de um e posta no carro de outro. Mentiras e mentiras. E de repente todos no cartel suspeitavam de todos. Em meio ao caos, eu subi de posto. Numa madrugada de reunião, liguei para a polícia pra armar emboscada, ela veio e houve troca de tiros. Distraídos com os militares, eu meti uma bala num dos grandes que mal teve tempo de perceber a traição. Fui atrás de outro e fiz o mesmo. Não tinha idéia de quem era mais influente. Tudo que queria era acabar com o crime. Por mim, por todas aquelas crianças usadas e, principalmente, pelo que fizeram ao meu pai.

E às vezes, para eliminar o mal você deve se tornar algo pior.

Não me orgulho das coisas que fiz, até porque o crime continuou e eu fui preso. Mas também não me arrependo de nada.

Fiz o que fiz por meu pai. Sei que foi errado, mas não consigo ver as coisas de outra forma. Até hoje ele ainda faz um tratamento, tomando remédio e recebendo fisioterapeutas em casa. E se me perguntarem por que permaneço no crime, eu mostro as notas dos remédios. São caros. E o único dinheiro que pode pagar por eles é o que eu envio nas datas importantes, quando a cadeia me libera. Dinheiro do crime.

Ali, diante do meu pai, eu queria dizer tudo isso. Dizer o quão louco fiquei quando soube que ele iria morrer num hospital de bosta. Queria falar o que achava dele, demonstrar minha admiração, dizer que era o meu herói.

Queria dizer “eu te amo”.

Mas a minha boca disse:

─ Desculpa pai, eu tenho que ir. Sabe como é, algumas coisas pra resolver, e depois voltar pra cadeia.

Ele não me libertou do abraço. Começou a tremer e me apertou com mais força. Senti sua primeira lagrima molhando meu pescoço. Meus olhos se encheram também, mas eu fui forte e decidi não chorar.

─ Pai, eu ─

Interrompi-me quando ele sussurrou algo. Não pude entender o que dissera, mas logo em seguida fui liberto do abraço. Eu apanhei sua bengala do chão rapidamente, pois sabia que ficar em pé por muito tempo era uma tortura para ele. Entreguei a sacola com os discos e, junto, uma porção de dinheiro.

Só então o olhei nos olhos. Aqueles olhos que diziam tanto e mais ainda.

─ Se cuida ─ eu disse, e me virei antes dele me ver chorar. Fui embora sem olhar para trás.

Não tenho certeza, mas aquele último olhar dele... Eu pude lê-lo também.

Dizia “obrigado, filho”.

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