sexta-feira, 23 de março de 2012

A Fúria dos Reis

George R. R. Martin faz parecer fácil abranger tantos acontecimentos e tantos personagens, ligar pontas soltas e criar outras em duas ou três páginas, viajar no tempo-espaço com narrações que permeiam um dia ou uma semana em diferentes locais, brincar com o julgamento do leitor em relação à um personagem, brincar com a memória do leitor em relação aos inúmeros nomes e títulos, e tantos outros aspectos bem vistos em suas Crônicas de Gelo e Fogo. Não é a toa que o trabalho todo envolve cinco livros, com mais dois previstos para o futuro. Não é a toa que virou modinha mundial. Mas, veja bem: é uma modinha bem adulta e feroz, do tipo que corta perigosamente, deixando cicatrizes em quem lê.

Eu tive um intervalo de meses, entre o término da leitura do livro um ao inicio do livro dois. Logo, as Crônicas fizeram um refém e eu tive de me empenhar muito para negociar. Esse refém era minha memória. O sem-número de nomes e títulos que a estória cultiva me deixou zonzo. Lembrar de um coadjuvante através do nome se tornou simplesmente impossível para mim. Felizmente a negociação durou somente alguns capítulos. A Fúria dos Reis continua muito bem de onde A Guerra dos Tronos parou, mas em um piscar tudo foge dos trilhos previstos deixados pelo primeiro livro, e o leitor embarca em novas possibilidades. Alguns capítulos lidos e pronto, a memória já resgatava coisas importantes do livro um, e se esforçava para manter a linha durante os novos acontecimentos.

E que acontecimentos! A Fúria dos Reis é uma baita briga pelo poder. Levantam-se, inicialmente, quatro reis. Cada um com motivos bem concretos para tomar o poder definitivo do reino (exceto Robb Stark, que deseja um poder parcial, reinando unicamente no Norte, livrando-se de qualquer compromisso com o restante do continente). Daí, assistimos um reino tomado pela guerra. E o reflexo disso no reino, narrado principalmente pelos capítulos da Arya, é mortífero, como em toda guerra. Mesmo não narrando os acontecimentos em si, é espantoso como George consegue passar a noção de guerra prosaicamente, como efeito de fundo, geralmente um comentário ou outro, bem deslocado, mas que são imensamente informativos.

A chance de se surpreender continua em um bom nível. Sobre tudo nas perspectivas do Theon e, mais tarde, Bran. Através desses dois, enxergamos uma guerra civil entre os próprios nortenhos, um povo se levantando contra o outro em busca de domínio e poder. É nada mais na menos que o inicio de uma autodestruição de um povo que deveria ter a mesma causa. Mas, no jogo dos tronos deve-se dúvidar de todos, e em uma época que vários reis se levantam, a impressão que se dá é que qualquer um pode ser rei. É o que vemos, muito antes dessa pré-guerra civil, através de Theon Greyjoy: seu pai, Balon Greyjoy, também se proclamando rei, aproveitando a distração dos demais reis uns com os outros para tomar o Norte para si. Com ele, o reino se divide em cinco reis.

A guerra fora pra mim o mais atrativo. O sentimento de perigo espreitando a cada colina, onde pode-se ou não encontrar batalha. O lado estratégico da coisa, como Renly, inicialmente apenas exibindo seu poderio, esperando um vencedor entre Tywin Lannister e Robb Stark, ou a investida de Stannis Baratheon em Porto Real, para depois cair sobre eles com um exército ainda imaculado de batalhas. A tentativa de alianças do Jovem Lobo com o próprio Renly e Stannis, através de Catelyn, e com Balon, através de Theon. Tyrion, um verdadeiro gênio, também precipitando alianças com famílias poderosas, através de casamentos, para somar espadas à causa Lannister. O orgulho de cada rei, onde ninguém quer ceder, uma vez que baixar a cabeça a outro rei pode desmotivar seus próprios homens, perdendo, da noite pro dia, valor e respeito. Enfim, é a partir dessas coisas que um ritmo frenético se instala. Um ritmo longe de cessar, com todos bem cientes que em uma guerra não há vencedores. Mas alguém perde.

Além da guerra temos as tramas para lá da Muralha com Jon, e nas Terras Livres com Dany. Ambos, francamente, deslocados do quesito emoção que os outros pontos vista proporcionam. Justamente por estarem longe da guerra. Ao menos de inicio, ambos passaram em branco para mim. Principalmente Jon, com capítulos corridos que demonstrava uma rotina pouco aleatória, onde nada demais acontecia. Não obstante, lá pro fim, há um salto de qualidade: Dany com as visões, e Jon como batedor em um grupo pequeno da Patrulha da Noite.

Sobre os personagens, Tyrion ganha os troféus de carisma, as melhores frases do livro e “como jogar o jogo dos tronos”. George é outro autor quando escreve os capítulos do Tyrion, é tudo tão dinâmico e bem encaixado que difere dos outros personagens. O Duende consegue rivalizar com a irmã, rainha Cersei, tratar sabiamente com seu conselho altamente suspeito, trocar frases engraçadas com Bronn, pensar em alianças com outras famílias, pensar em estratégias de batalha, se preocupar com Stannis, Renly e Robb, e, no fim do dia, foder uma prostituta. Detalhe: tudo no mesmo capítulo. Assim como Eddard fora o “principal” no livro um, sem dúvida Tyrion ocupa esse posto no livro dois.

Theon é outro cara que simpatizei. É quase como o Tyrion, mas não é anão, nem inteligente. Um cara que era extremo coadjuvante demonstrou a ânsia de ser um senhor soberano, e largou mão de sua irmandade com Robb por esse sonho. Eu realmente estava torcendo por ele, que tivesse sucesso na vida e tudo mais. Mas George R. R. Martin usa Theon como capacho. O pobre diabo é a humilhação em pessoa, ninguém o respeita devidamente, e com o passar do livro isso piora, visto que suas ações não geram bons resultados. Ao fim, ele volta a ser um coadjuvante ultrajado pelo destino. Mas, me foi um bom personagem.

E devo destacar alguém que pensei não simpatizar: Sansa. Pois é, no livro um a menina não se mostra tão boa gente, é verdade, mas em A Fúria dos Reis, o autor emprega mais encanto à sua personalidade, roubando um clichê de video game que ninguém costuma usar: uma princesa que precisa ser salva. Sim, Sansa virou uma princesa indefesa, forçada a se adaptar com sua situação, e sofrendo horrores a cada capitulo sem nenhum herói para salvá-la. O amadurecimento da personagem é louvável. E os seus conturbados encontros com o Cão de Caça também são intrigantes, principalmente na ultima aparição do homem no livro... Cão de Caça é um típico anti-herói que estou muito curioso pra entender.

Davos também é bacana. Embora somente três capítulos teus no livro, todos conseguem suprir com um bom nível de tudo que eu disse sobre as guerras. Só lamento, na batalha naval, a narração ter ficado pouco surpreendente. Senti falta de maiores observações da postura do personagem, em meio à batalha. Achei tudo meio vago. Felizmente, Tyrion salva essa mesma batalha com um capitulo bem rápido e dinâmico.

Sonhos. George deve ser um maluco por sonhos. Eles estão em todas as partes. Todos os personagens sonham. Até eu sonhei com lobos, corvos e dragões. Variam de pesadelos à estranhas visões. E são muitos os significados. Alguns são narrados em um parágrafo enquanto outros tomam páginas. E tem uma hora que o negócio ganha uma película sobrenatural, onde sonhar não parece ser obra do acaso. Nesse ponto, Bran é a incógnita mestra. Creio que todos os capítulos dele narram algum sonho, ou fazem menção. O personagem em si não avançou tanto. Mas deixou certa curiosidade sobre seus futuros passos.

Já quem avançou mesmo foi Arya. A menina foi convertida a um sentimento de vingança, tornando-se outra, abruptamente. Ainda é uma criança, mas já possui a cabeça de quem não vacila quando está de frente à um inimigo. Venceu desafios por todo o livro, com inteligência e obstinação. É a outra que, junto com Tyrion, proporciona bons momentos ao leitor.

E com a Catelyn o ritmo diminui um pouco. A personagem se limita à seu filho Robb guerreando, à seu pai doente, e à preocupação com seus filhos em Winterfell e suas filhas reféns em Porto Real. Seus capítulos são quase todos depressivos. É a personagem mais pé no chão, que não esta envolvida com batalhas. Seu drama é quase palpável, sendo fácil para o leitor entende-la e admira-la. O melhor do livro, sobre sua perspectiva, foi o diálogo de Stannis com Renly, e o surgimento da coadjuvante Brienne.

E por fim, mas não menos importante, deve-se aplaudir o magnífico trabalho de tradução feito pelo Jorge Candeias. Um baita trabalho, pois, achar interpretações como “fode-irmãos” é para poucos. As Crônicas não poderiam estar em mãos melhores! 

E chega. Creio ter comentado o suficiente. É um baita livro, o que não é surpresa alguma. Recomendo, principalmente a pessoas que não se apegam muito à personagens...

Agora, deixa eu me defender, pois uma Tormenta cortante esta caindo...

Nenhum comentário:

Postar um comentário